domingo, 31 de julho de 2011

Rubem Fonseca


O Vendedor de Seguros
Renata, de vestido novo, ficou de lado na frente do espelho, virou o pescoço para ver o traseiro, era um espelho grande que dava para ela ver o corpo por inteiro. Quando coloquei meu paletó, nem sei como me notou, quando olhava para o espelho ela não via mais nada, perguntou você vai sair a esta hora para trabalhar?
Meu negócio é vender seguros, você sabe disso, não tenho horário, respondi.
Eu preferia que tivesse, são cinco horas da tarde, não sei a que horas vai voltar, já vi que não vamos sair hoje à noite, de que adianta eu comprar roupas novas se não saio com elas?
Desculpe, mas tenho que ganhar dinheiro.
Você não tem ganho muito ultimamente.
A concorrência é muito grande. E isso não era uma desculpa.
Pelo menos vou ver o meu desfile, ela disse, ligando a televisão. Havia uma TV a cabo que passava um desfile de moda todos os dias.
Quando eu estava na porta Renata disse, as mulheres elegantes agora andam com seios de fora, o que você acha?
Ainda não vi isso.
Eu disse mulheres elegantes. Quantas mulheres elegantes você conhece?
Só você.
Se as coisas continuarem assim, não vai ser por muito tempo.
Peguei o carro e parei na porta do meu futuro cliente, um prédio de cinco andares. Não parei exatamente na porta, parei um pouco antes. Ele sempre chegava de táxi carregando uma pasta, era um sujeito muito gordo, devia ser das pizzas que comia. Saiu com dificuldade do carro, pensei que desta vez ele estava sozinho, mas o outro cara, um barbudo, saiu logo em seguida. Eu queria visitá-lo quando ele estivesse sozinho, o outro sujeito não estava no seguro e eu não ia desperdiçar o meu latim. Eles entraram no edifício e eu acendi um cigarro. Meu celular tocou. Atendi.
É você?
Quem podia ser?, eu disse.
Diz a senha.
Cara, você anda vendo filmes demais.
É a maneira que eu trabalho. Você já devia estar acostumado.
Foz do Iguaçu.
Tenho um seguro para você.
Vai ter que esperar. Estou no meio de uma venda.
Que apólice é essa? Você trabalha para outro corretor?
Isso não interessa.
Quando acaba?
Não sei. Você também devia estar acostumado com a minha maneira de trabalhar.
Acho que você anda meio promíscuo.
Preciso ganhar a vida. Você não arranja negócios suficientes.
Que ruído é esse?
Não ouvi nenhum ruído.
Eu ouvi. Você sabe que celular é uma merda. Linha cruzada, os narigudos entram facilmente.
Fodam-se os narigudos, não estamos dizendo nomes.
Troca de celular.
Estou com ele há menos de dois meses.
É muito tempo. Eu troco todos os meses.
Você é um corretor.
O vendedor também tem que fazer isso. Ainda mais um como você, que mija fora do penico.
Acabou?
Te ligo daqui a dois dias.
Esperei meia hora e chegou o entregador de pizza. Falou no interfone que ficava na portaria, a porta foi aberta, ele entrou. Uma mola fechava a porta. O prédio não tinha porteiro. Acendi outro cigarro. Esperei uma hora, fumei 8 cigarros esperando  o barbudo sair. Um táxi parou na porta do prédio e pouco depois o gordo e o barbudo saíram juntos e entraram num táxi. Eu não ia perder tempo seguindo os dois, não me interessava o que eles faziam. Voltei para casa.
Antes de entrar, desliguei o celular. Renata estava vendo televisão.
Voltou rápido. Vamos pedir uma comida no chinês?
Está bem.
Você não está muito entusiasmado. Você não gosta de comida chinesa. Confessa.
Confesso que não gosto de comida chinesa.
Você só gosta de bacalhau.
Está tirando sarro comigo?
Mais ou menos. Como foi o desfile de moda?
Algumas modelos desfilaram com a bunda de fora. O que você acha?
Não conheço mulheres elegantes.
Está mesmo tirando sarro comigo. No escritório da companhia de seguros você não vai mesmo ver mulheres desfilando com a bunda de fora.
Onde que isso acontece?
Nos lugares chiques. Lugares onde ninguém anda com um revólver debaixo do sovaco, como você.
Não é revólver, é pistola. Me sinto mais tranqüilo com ela. Já imaginou, estou vendendo um seguro numa joalheria e aparece um assaltante?
Se aparecer, o que você faz?
Não sei. Isso ainda não aconteceu.
E você foi vender seguro numa joalheria hoje?
Não.
Mas levou o revólver.
Virou hábito. É pistola.
Para mim é tudo a mesma coisa. Vou ligar para o chinês.
Comemos a comida do chinês. Renata continuou vendo televisão. Eu fui deitar. Antes fumei um cigarro na área de serviço, Renata não me deixava fumar em nenhum outro lugar da casa. Mais tarde ela entrou no quarto, tirou a roupa. Minha vida é tão chata, ela disse, ainda bem que você não nega fogo.
O mérito não era meu. Com a Renata ninguém ia negar fogo.
Durante uma semana eu fiquei vendo o gordo chegar de táxi, e o barbudo estava sempre com ele. Nunca vi os dois conversando. Depois aparecia o entregador de pizza. O gordo ficava cada dia mais gordo, mas o outro cara parecia ficar mais magro, vai ver não gostava de pizza. Um dia eu fiquei a noite inteira nas imediações do apartamento do gordo, os cigarros acabaram e eu fiquei ali, esperando o barbudo sair, mas ele não saiu. Então passei a chegar lá de madrugada. O barbudo saía por volta das sete da manhã, ele usava sempre um blusão largo, bom para esconder uma ferramenta, tinha cara de tira, devia pegar o serviço na delegacia de manhã. O gordo só saía de tarde.
Cheguei em casa e encontrei um bilhete da Renata. Pra mim chega, fui para a casa da minha mãe. O engraçado é que ela sempre tinha me dito que não tinha mãe. Levou as três malas com as roupas dela, também não tinha muito mais coisa para levar, ela só comprava roupa. Esse assunto tinha que ficar para depois, eu tinha outro problema para resolver antes. Peguei o telefone e pedi comida no chinês, não sei bem por quê. Acho que queria ficar na ponta dos cascos, e a melhor maneira para isso é comer mal.
Meu cliente morava no quarto andar. O corredor estava deserto. Tirei o silenciador do bolso e adaptei no cano da pistola. A fechadura da porta podia ser aberta até por um amador. Entrei. O corretor havia me fornecido a planta do apartamento. Não ouvi nenhum barulho, nem fiz nenhum. Ninguém na sala, nem na cozinha. Fui para os quartos, as camas estavam desarrumadas mas nenhum sinal do cliente. A porta do banheiro estava entreaberta.
Abri lentamente a porta do banheiro com o cano do silenciador.
Meu cliente estava deitado na banheira, com água até o pescoço. Me viu quando entrei, e deu um suspiro. Eu devia atirar logo, mas não atirei.
Vai perder o carreto, ele disse, com sotaque de português. Começou a tirar um dos braços de dentro da água.
Devagar, eu disse, apontando a pistola para a cabeça dele.
Ele me mostrou o pulso, sangue escorrendo. A água não estava muito vermelha. Uma gilete brilhava no chão de azulejo. Sentei no banco ao lado da banheira.
Me mostra o outro braço, pedi.
Também tinha o pulso cortado.
Coloquei as luvas e revistei a casa. Encontrei um revólver, um 22, o tambor carregado.
Tirei as luvas e saí. Desci o elevador, pensando. Quando cheguei ao térreo, apertei o botão do quarto andar. Entrei novamente no apartamento do cliente.
Ele viu quando entrei no banheiro.
Voltou?
Quanto tempo demora isso?, perguntei.
Não sei. Mas não dói.
Coloquei as luvas, fui à sala, peguei a arma do cliente e retornei ao banheiro.
Não olha para mim, eu disse.
O 22 não faz muito barulho. Atirei na cabeça dele. Mais uma noite sem dormir.
Deixei o revólver no chão do banheiro, ao lado da gilete.
Liguei do carro para o corretor.
Fiz o serviço.
Faço o depósito hoje, disse o corretor, e desligou.
Gosto de tomar banho de banheira, ler o jornal deitado na água quente. Mas não tomei banho. Entrei só para urinar.
Não almocei. Mais uma noite sem dormir. Seria bom se Renata estivesse comigo.

Texto extraído do livro "A Confraria dos Espadas", Companhia das Letras - São Paulo, 1998, pág.43.

domingo, 24 de julho de 2011

Arnaldo Antunes


Os buracos do espelho

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí


pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some
a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Martins Pena


O Juiz de Paz na Roça
Cena IV
Entra Manuel João com uma enxada no ombro, vestido de calças de ganga (tecido grosseiro de algodão) azul, com uma das pernas arregaçada, japona de baeta (tecido felpudo de lã) azul e descalço. Acompanha-o um negro com um cesto na cabeça e uma enxada no ombro, vestido de camisa e calça de algodão.
Aninha - Abença, meu pai.
Manuel João - Adeus, rapariga. Aonde está tua mãe?
Aninha - Está lá dentro preparando a jacuba (bebida preparada com agua, farinha e açúcar).
Manuel João - Vai dizer que traga, pois estou com muito calor. (Aninha sai. M. João, para o negro:) Olá, Agostinho, leva estas enxadas lá para dentro e vai botar este café no sol. (O preto sai. Manuel João senta-se.) Estou que não posso comigo; tenho trabalhado como um burro!
Cena IX
Sala em casa do Juiz de Paz. Mesa no meio com papéis; cadeiras. Entra o Juiz de Paz vestido de calça branca, rodaque (casaco) de riscado, chinelas verdes e sem gravata.
Juiz - Vamo-nos preparando para dar audiência. (Arranja os papéis.) O escrivão já tarda; sem dúvida está na venda do Manuel do Coqueiro... O último recruta que se fez já vai-me fazendo peso. Nada, não gosto de presos em casa. Podem fugir, e depois dizem que o juiz recebeu algum presente. (Batem à porta.) Quem é? Pode entrar. (Entra um negro com um cacho de bananas e uma carta, que entrega ao Juiz. Juiz, lendo a carta:) "Ilmo. Sr. - Muito me alegro de dizer a V. Sa. que a minha ao fazer desta é boa, e que a mesma desejo para V. Sa. pelos circunlóquios com que lhe venero." (Deixando de ler:) Circunlóquios...... Que nome em breve! O que quererá ele dizer? Continuemos. (Lendo:) Tomo a liberdade de mandar a V. Sa. um cacho de bananas-maçãs para V. Sa. comer com a sua boca e dar também a comer à Sra. Juíza e aos Srs. Juizinhos. V. Sa. há de reparar na insignificância do presente; porém, Ilmo. Sr., as reformas da Constituição permitem a cada um fazer o que quiser, e mesmo fazer presentes; ora, mandando assim as ditas reformas, V. Sa. fará o favor de aceitar as ditas bananas, que diz minha Teresa Ova serem muito boas. No mais, receba as ordens de quem é seu venerador e tem a honra de ser - Manuel André de Sapiruruca." Bom, tenho bananas para a sobremesa. Ó pai, leva estas bananas para dentro e entrega à senhora. Toma lá um vintém para teu tabaco. (Sai o negro.) O certo é que é bem bom ser Juiz de Paz cá pela roça. De vez em quando temos nossos presentes de galinhas, bananas, ovos, etc., etc. (Batem à porta.) Quem és?
Escrivão, dentro - Sou eu.
Juiz - Ah, é o escrivão. Pode entrar.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Luís Fernando Veríssimo

O grampo da velhinha

Como se sabe, existe uma velhinha em Taubaté que é a última pessoa no Brasil que acredita. Ela acredita em anúncio, acredita em nota de esclarecimento, acredita até nos ministros da área econômica. Depois que foi localizada, a velhinha de Taubaté, coitada, não teve mais sossego. Todos os dias batem à sua porta querendo saber que canal ela está olhando, que produto ela está usando e se a explicação do governo sobre o último escândalo foi convincente. Ela sempre diz que foi. Algumas agências de publicidade estão incluindo no seu approach de marketing um ``Velhinha Factor``, ou a questão: isto passa pela velhinha? Muitas entidades públicas e privadas mantêm a velhinha sob constante observação. Fala-se mesmo que existe em Taubaté uma unidade médica em prontidão permanente, exclusivamente para atender a velhinha em caso de mal súbito ou escorregão. Há uma convicção generalizada de que, quando a velhinha se for, tudo desmoronará. A boa saúde da velhinha interessa tanto ao governo quanto à oposição responsável. Se ela morrer - ou deixar de acreditar -, teremos o caos, que não convém ao projeto político de nenhum dos lados. Quando o Tancredo e o Figueiredo se encontrarem e um perguntar como vai a saúde, não estará se referindo nem ao outro, nem ao Aureliano. Estará falando da velhinha de Taubaté. Só a velhinha de Taubaté nos separa das trevas.
Por isto, segundo o Correio Braziliense, o SNI decidiu intensificar sua vigilância sobre a velhinha e um agente disfarçado de funcionário da companhia telefônica bateu à sua porta, há dias. Foi a própria velhinha, um pouco irritada com as constantes interrupções do seu tricô e do seu programa na TV, quem atendeu.
- Quié?
- Vim consertar o telefone.
- Eu não tenho telefone.
O agente pensou com rapidez.
- Vim instalar o telefone e depois consertar.
- Mas eu não comprei telefone nenhum.
- Deve ser presente de alguém.
- Quem me daria um telefone de presente?
- Alguém que está tentando ligar para cá e não consegue.
A velhinha acreditou. Mas pensou um pouco e decidiu:
- Se ele já vem estragado, eu não quero.
E fechou a porta. O agente entrou em contato com seus superiores. Recebeu instruções para adotar o Plano de Contingência B. No dia seguinte bateu à porta da velhinha vestido de mulher e apresentando-se como divulgadora de produtos de beleza. Apesar do bigode e da barba, a velhinha acreditou. Deixou-o entrar e enxotou um gato de uma poltrona para ele sentar.
- Estamos lançando uma linha de grampos para o cabelo e queremos que a senhora seja uma das primeiras a experimentar.
- Mmmm. São grátis?
- Absolutamente grátis. Só há algumas condições. A senhora precisa usá-los o tempo inteiro. Menos no banho, porque se molhar estraga o
transmis... Estraga o grampo.
- E se eu quiser comprar depois de experimentar, posso?
- Pode.
- Quanto custa cada um?
- Dez mil dólares.
- É um pouco salgado...
A velhinha está usando os grampos o tempo inteiro, menos no banho e todas as suas reações estão sendo gravadas e mandadas para Brasília, para análise. Houve um momento de suspense quando a velhinha, em conversa com um gato, expressou algumas dúvidas sobre o caso Capemi. Mas as dúvidas passaram e a velhinha voltou a acreditar na versão oficial. Sua pulsação é firme. Sua digestão é boa. Fora uma pequena artrite, nada ameaça sua saúde. Ainda temos algum tempo antes do caos
.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Álvaro de Campos


O Sono
O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim —
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.
Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
E o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.
O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.
Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.
Meu Deus, tanto sono! ...