quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Humberto de Campos

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O MONSTRO


Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas,
caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e
vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem
elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recémcriadas.
Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais
contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões
fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras,
estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo
começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que
os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com
a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se
sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do
barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal
vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos
primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água,
fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos
outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão
silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça
brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos,
desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.
Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando,
colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um
alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se
perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho
seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas,
monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como
que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da
Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora
mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa.
Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de
agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto
impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais
alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.
Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se
a companheira.
Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua
onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?
A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o
Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:
- Para nós ambas, talvez...
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o
objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com
certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das
grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou
do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivandolhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse,
tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?
A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias,
modelando o seu filho.
- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos,
no lençol vagaroso da corrente.
- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol
endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que,
assim, trabalhava inutilmente.
- Traze mais água! - pedia.A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao
capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços,
o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora
silenciosa.
- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.
E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.
Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo
habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades,
uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os
seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os
bugios.
O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se
haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves
piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se
nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser
invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado
pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações
inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque
reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em
amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem
do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os
animais que lhe pareciam mais fracos.
Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na
criação do abantesma.
- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria
da sua criatura a parte com que havia contribuído.
- Eu dei a água! - tornou a Dor.- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.
Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as
tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e
começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi
embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Vinícius para Crianças

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O Pingüim
Bom-dia, Pingüim
Onde vai assim, Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado, Com medo de mim.
Eu só gostaria
De dar um tapinha
No seu chapéu de jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca.

 

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O Gato


Com um lindo salto Lesto e seguro
O gato passa Do chão ao muro
Logo mudando De opinião
Passa de novo Do muro ao chão
E pega corre Bem de mansinho
Atrás de um pobre De um passarinho
Súbito pára Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Pablo Neruda

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.
A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.
De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.
Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Arnaldo Antunes

O meu tempo


O meu tempo não é o seu tempo.
O meu tempo é só meu.
O seu tempo é seu e de qualquer pessoa, até eu.
O seu tempo é o tempo que voa.
O meu tempo só vai onde eu vou.
O seu tempo está fora, regendo.
O meu dentro, sem lua e sem sol.
O seu tempo comanda os eventos.
O seu tempo é o tempo, o meu sou.
O seu tempo é só um para todos,
O meu tempo é mais um entre muitos.
O seu tempo se mede em minutos,
O meu muda e se perde entre outros.
O meu tempo faz parte de mim,
não do que eu sigo.
O meu tempo acabará comigo
no meu fim.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Vinícius de Moraes


Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor
seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentando
Pela graça indizível
dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura
dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer
que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas
nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras
dos véus da alma...
É um sossego, uma unção,
um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta,
muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade
o olhar estático da aurora.