quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Cora Coralina


ASSIM EU VEJO A VIDA

Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Mário Quintana



Esperança


Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...


sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Vinícius de Moraes



Poema De Natal

Para isso fomos feitos:

Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:

Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:

Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:

Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Cora Coralina


Poesia de Natal 



Enfeite a árvore de sua vida
com guirlandas de gratidão!
Coloque no coração laços de cetim rosa,
amarelo, azul, carmim,
Decore seu olhar com luzes brilhantes
estendendo as cores em seu semblante

Em sua lista de presentes
em cada caixinha embrulhe
um pedacinho de amor,
carinho,
ternura,
reconciliação,
perdão!

Tem presente de montão no estoque do nosso coração e não custa um tostão!
A hora é agora! Enfeite seu interior! Sejas diferente! Sejas reluzente!

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Gregório de Matos

Epigrama

I

Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia.

Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.
Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.
Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.
Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.
Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.
Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.
Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.
E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.
Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha
Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.
E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.
Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.
O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.
A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.
Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.

sábado, 19 de novembro de 2011

Vinícius de Moraes

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Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Humberto de Campos

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O MONSTRO


Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas,
caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e
vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem
elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recémcriadas.
Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais
contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões
fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras,
estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo
começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que
os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com
a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se
sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do
barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal
vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos
primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água,
fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos
outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão
silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça
brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos,
desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.
Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando,
colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um
alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se
perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho
seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas,
monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como
que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da
Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora
mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa.
Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de
agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto
impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais
alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.
Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se
a companheira.
Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua
onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?
A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o
Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:
- Para nós ambas, talvez...
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o
objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com
certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das
grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou
do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivandolhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse,
tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?
A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias,
modelando o seu filho.
- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos,
no lençol vagaroso da corrente.
- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol
endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que,
assim, trabalhava inutilmente.
- Traze mais água! - pedia.A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao
capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços,
o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora
silenciosa.
- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.
E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.
Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo
habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades,
uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os
seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os
bugios.
O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se
haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves
piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se
nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser
invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado
pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações
inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque
reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em
amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem
do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os
animais que lhe pareciam mais fracos.
Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na
criação do abantesma.
- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria
da sua criatura a parte com que havia contribuído.
- Eu dei a água! - tornou a Dor.- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.
Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as
tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e
começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi
embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Vinícius para Crianças

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O Pingüim
Bom-dia, Pingüim
Onde vai assim, Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado, Com medo de mim.
Eu só gostaria
De dar um tapinha
No seu chapéu de jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca.

 

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O Gato


Com um lindo salto Lesto e seguro
O gato passa Do chão ao muro
Logo mudando De opinião
Passa de novo Do muro ao chão
E pega corre Bem de mansinho
Atrás de um pobre De um passarinho
Súbito pára Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Pablo Neruda

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.
A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.
De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.
Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Arnaldo Antunes

O meu tempo


O meu tempo não é o seu tempo.
O meu tempo é só meu.
O seu tempo é seu e de qualquer pessoa, até eu.
O seu tempo é o tempo que voa.
O meu tempo só vai onde eu vou.
O seu tempo está fora, regendo.
O meu dentro, sem lua e sem sol.
O seu tempo comanda os eventos.
O seu tempo é o tempo, o meu sou.
O seu tempo é só um para todos,
O meu tempo é mais um entre muitos.
O seu tempo se mede em minutos,
O meu muda e se perde entre outros.
O meu tempo faz parte de mim,
não do que eu sigo.
O meu tempo acabará comigo
no meu fim.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Vinícius de Moraes


Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor
seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentando
Pela graça indizível
dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura
dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer
que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas
nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras
dos véus da alma...
É um sossego, uma unção,
um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta,
muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade
o olhar estático da aurora.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Cláudio de Souza


AS TEORIAS DE BEDFORD
Acabaram-se as aulas. Rara era a análise que ainda se fazia. Eu continuava a ir diariamente, ao laboratório.
Trazia um livro, punha-me a lê-lo. Ou enchia as páginas de um caderno com anotações relativas a meu professor de química.
Bedford veio certa tarde ao laboratório, agradeceu-me a dedicação e dispensou-me a assistência, lamentando nada poder oferecer-me.
Conservaria, apenas, o rapaz que lhe estava fazendo, ao mesmo tempo, o serviço de recados. (Os recados eram pedidos de dinheiro a uns e a outros. A mim não mo pedira ainda, talvez por acanhamento.)
- Se quiser vir prosear, é com prazer.
A fórmula era de simples polidez, porque ele passava os dias ao lado de Mariana.
Continuei a freqüentar o laboratório, entretanto. Por que, se nada havia ali que fazer?
É o que só agora compreendo, ao escrever estas notas.
Era o eflúvio imponderável, a emanação fatal daquela carne lúbrica de mulher que se ia apoderando de mim... Como vim a sentir-lhe o doce e cruel apelo!...
Certa tarde, ao sair de um livreiro, se me deparou o Nunes, que havia muito não encontrava. Acabava de doutorar-se em medicina. Arrastou-me para um café sonolento e vazio. Contou-me as peripécias da defesa de tese, suas esperanças, a alegria de se ver, enfim, livre e senhor de si. Ouvia-o distraído. Entraram, sucessivamente, duas mulheres, e tomaram assento, olhando-nos com insistência. Uma era rubicunda e grosseira. A outra, ruiva e seca, tinha a pele picada pela varíola, cujas cicatrizes lhe davam o aspecto da fruta de conde. A imaginação povoada pelas sacerdotizas de Afrodite, mirei-as com repugnância.
Queres ouvir-me ou não? - disse-me o Nunes, que logo acrescentou, ao ver para onde me iam os olhos: - A ruiva é graciosa, mas a gorducha só como domingo de Páscoa após alguma quaresma severa.
Repliquei-lhe que eram nojentas. Reproduzi-lhe o quadro que Bedford me fizera entrever.
- Mas isso tudo é romance, amigo. Temos hoje muito melhor. Mil e quatrocentas hetairas em Alexandria... Que é isso? Vichy, segundo acabo de ler, pequena cidade de águas para o estômago (imagine se fosse para outro órgão) tem três mil cortesãs inscritas, afora as que se não inscrevem... por pudor. Paris tem quatro milhões de habitantes e mais de um milhão de "livres-amorosas" como você liricamente lhes chama. E Londres? E Berlim? É verdade que no capitulo amor nada descobrimos de novo, nem um vício a mais. Mas se os antigos nos pudessem visitar, que pesar lhes causaria não terem nascido hoje?
E procurou dissuadir-me das ilusões "do acne, das espinhas românticas dos adolescentes".
De nada me valeram, porém, tais discursos. Bedford envenenara-me com suas lascivas evocações. No dia seguinte, como ele aparecesse no laboratório, não lhe escondi a impressão que elas me haviam causado.
Bedford sorriu. Uma só narrativa bastara para me interessar, e, entretanto, meses, anos a seguir eram necessários para que um discípulo ganhasse amor a outros estudos. Vitória da natureza contra o artificialismo, do instinto contra o raciocínio derrotista, porque o amor é o princípio, o meio, o fim de nossa vida animal, - disse-me ele. E a vida animal é a única que se realiza na alegria, na felicidade. O mais é tortura de raciocínio sem fim e sem esperança, de preconceitos morais que são verdadeiras perversões, verdadeiros crimes contra a natureza, de intrigas, de orgulhos, de ambições de honras que, tudo somado, nada valem. E Bedford inflamava-se:
- Apregoam a civilização como a vitória da moral contra a natureza. Que fizemos nós de maior, de mais alto, de mais glorioso do que os gregos e os romanos? A Grécia conseguiu chegar ao supremo grau do aperfeiçoamento intelectual. Seus artistas, seus homens de ciência, seus filósofos, seus retores, seus poetas, seus escritores, seus escultores, seus pintores, seus matemáticos têm ainda hoje fama celebrada pelas mais adiantadas civilizações. A Hélade sagrada ainda é o coração imortal da fantasia, da arte, iluminura das melhores páginas de concepção humana. E entre seus grandes artistas, como entre seus bravos guerreiros, o amor é irradiação sempre clara da natureza livre que a Acrópole consagra e diviniza.
À minha puberdade, ao meu erotismo de adolescente, Bedford parecia irrespondível de genialidade.
Ele inflamou-se, como sempre que desenvolvia teorias sexuais.
Falou-me de Roma, cotejou-lhe a luxúria, veio pela Idade Média, entrou pela moderna, e provou, provou exuberantemente - ao menos a mim me parecia isto - que a cultura e a civilização se acompanham da emancipação dos instintos naturais do amor.
- Os preconceitos, as peias ao ato natural do amor, que é infinitamente belo, colocam o racional abaixo do irracional, pois este, felizmente para ele, nunca poderá construir filosofias imorais que vão de encontro às sábias leis da natureza. Digo mais: colocam o homem abaixo da percepção vital dos próprios vegetais, que se cruzam livremente na execução perfeita das leis naturais! - bradou Bedford. Qual foi a primeira página de moral religiosa? A folha de parra. O suficiente para esconder, apenas, o que se sabe. Ora, esse primeiro princípio de moral foi o da hipocrisia, porque é evidente que, tanto o homem quanto a mulher, antes e depois de haverem pecado, sabiam o que estava por baixo da folha. Fingiam desde então ignorar o que desejavam pela força polar, pela força vital de suas células, como os outros animais. Depois a folha de parra cresceu. Cobriu o umbigo, subiu aos seios, desceu pelas pernas, com exclamações de espanto de todas as partes do corpo, estranhas ao ato sexual. E a hipocrisia é tão evidente que deixaram a descoberto a boca, paraíso de volúpia, e as mãos, mensageiras de carícias e armas da violência e do estupro... As civilizações modernas estão a alargar os decotes e a encurtar as saias da moral, como rasgam largas avenidas e derribam os pardieiros. Porque a vida, amigo, é o amor, é o ato de perpetuação da espécie.
Sua fisionomia tomou aspecto de ironia piedosa:
- Olhe para o ar, meu amigo, para as nuvens de ouro de pólen que correm o espaço. Veja o rio que deflui límpido, feliz, sereno. Se lhe opõem obstáculo, as águas turvam-se, encrespam-se, encachoeiram-se. Deixa de ser o rio feliz e sereno para ser a raiva e o tumulto. Assim, o amor. Por que, então, por qual maldade feroz transformar a doce e linda melodia na tragédia dos vícios e dos crimes? Eis a obra imoral da hipocrisia de nossa moral.
Quando vim para a rua após aquela aula, dançava-me diante dos olhos toda a história erótica da espécie. Era dia esplendoroso de sol. Via no espaço a marcha triunfal do pólen, a procissão maravilhosa de fascinantes formas femininas, de reflexos, de olhares que cegavam... Havia um parque em frente à casa de Bedford. O perfume das magnólias era vivo, capitoso, morno, e parecia exalar-se dos corpos nus daquela feminilidade esparsa, a bailar na luz... Formas vegetais e formas animais, as primeiras desabrochavam em flores, as segundas em sorrisos claros de aleluia, quando recebiam o beijo fecundante... E como sorriam as mulheres... Parecia-me ver a que fora meu primeiro amor, meu único amor, e que sorria assim, inebriada, quando eu a possuía...
O ar era uma alegria só, festa universal... O amor era a atração de pólos que se buscavam, de afinidades que se saturavam, e sentia-se, no espaço, frêmito e apaziguamento gostoso que se sucediam...
Tinha razão Bedford... com seu animalismo sadio, saciado, contente.
Baixei os olhos para a terra. O auto carregava-me agora pela mais populosa das avenidas, pelo trânsito central, o eixo, a espinha de nossa civilização. As mulheres passavam quase nuas, ou antes, apenas cobriam pouco mais do que os selvagens escondem com penas à roda da cintura. As saias curtas, encurtando sempre, à proporção que se civilizam. Os decotes fundos, afundando sempre na proporção das saias. E o nudismo das praias?..
Eram reais as teorias de Bedford! A civilização podia ser medida pela emancipação dos costumes. Nossas avós usavam roupas fechadíssimas, do queixo aos pés, e viviam fugidas do homem. Atrasadonas, semibárbaras, enclausuradas em casa. Se vinham à rua, era de olhos baixos, passo monástico. E o Brasil, que era? Umas aldeias isoladas...
E as mulheres de hoje? Vivem na rua, andam, lascivamente, em ondulações de quadris que evocam os transportes mais quentes do amor, enquanto os seios, subindo, com a marcha, em maré cor de rosa, quase ultrapassam o fragilíssimo cais de seda que as rendas finas transparentes orlejam de espuma...
Seus perfumes intensos, essências sintéticas em que se esgotam os químicos como Bedford - esquecia-me de dizer que Bedford se ocupava, então, de descobrir, essências lascivas - misturadas com as emanações dos corpos bem lavados, e ligeiramente úmidos de suor, desprendiam-se mornos e mais capitosos, mais excitantes nos ardores da canícula do que o satiricon que as cortesãs de Alexandria davam a beber aos amantes velhos. E olhavam os homens com franqueza, com acessibilidade, quando não com audácia provocadora. O amor caminha de emancipação em emancipação. E o Brasil de hoje que é? Uma civilização que se impõe.
Entrei num cinematógrafo. Todos os cartazes eram de beijos, de abraços, de cenas mais ou menos lúbricas. No maior deles, lia-se "Afrodite", evocação das cenas antigas de amor que Bedford me descrevera. Havia um aviso ditado pelo Juízo dos Menores: "Impróprio para senhoritas e menores." E senhoritas e menores entravam, aos bandos, com habeas-corpus requerido por seus próprios pais...
Na tela, beijos longos, infindáveis, a perda de hálito, nos quais se sentia a sucção, a dentada, o glotismo.
A sala fremia. Os pais confraternizavam com as filhas. Os seios das mulheres palpitavam de excitação. Os rapazes estalavam bucotas. Meninas impúberes iniciavam-se nos mistérios de Afrodite. Eram as classes do Didascalion, talvez mais completas... E as velhas mães complacentes sorriam... Terminado o beijo, as outras artes de sedução feminina. O sorriso, o gesto provocante, a carícia de surpresa, o retraimento, toda a gama... que vinha, de novo, morrer, em abraços violentos e em beijos tão vivos, tão quentes, tão impetuosos que, agora, até mesmo as cadeiras das velhas mamãs estremeciam. Vaporizadores espalhavam no ar perfumes capitosos que se casavam com as emanações animais...
E no escuro, outras bocas se juntavam, excitadas, enquanto carícias se trocavam, e o ar se enchia do mesmo bafo quente de sensualidade do bosque de Afrodite. As luzes vacilantes das lâmpadas de mão dos indicadores pareciam as pupilas dos sátiros montados nas cabras montesas que decoravam o zoóforo do antigo templo. E eu que nunca havia percebido aquilo? Fora preciso que Bedford me abrisse os olhos! Terminara a fita naquele frêmito de sensualidade. A luz mostrou olheiras roxas, fisionomias quebradas e olhos ainda cheios de desejos não satisfeitos.
E há um cinema em cada rua nas cidades modernas de Afrodite... Nunes colheu-me o braço na saída.
- Que decepção? - disse-me ele. - O reclamo fez-me supor que a fita fosse mais ousada. Exploradores!
Vi que toda gente saía com a mesma impressão. Queriam mais? Por cinco mil réis só aquilo?.. Exploradores!
- Como vai o Bedford? - perguntou-me Nunes.
E a ouvir-me contar o assunto das preleções, concluiu:
- O Bedford está em caminho da loucura. E faz-me pena! Tão esforçado pesquisador! Esperava-se dele um mundo de revelações. Vou amanhã contigo à sua casa porque estou preparando monografia acerca da obsessão sexual. Pobre Bedford! O final de todos os grandes gozadores é a pasmaceira, a idiotia, após o furor lascivo. O genitalismo domina-lhes todas as manifestações da vida. As alucinações eróticas cativam os cinco sentidos, o olhar, a audição, o olfato, o tato, o paladar. Em tudo, vêem a forma sexual. Nos galhos das árvores, pernas de mulher; na curva de uma cúpula de igreja, um ventre feminino; no vaivém do pistão de aço que se balança dentro do cilindro de um motor, o ato venéreo; em dois cômoros que se acuminam, seios túmidos de desejo; num vaso sagrado de altar, uma cintura, uns quadris!
Lembrei-me das mãos de Bedford a acariciarem, enquanto dissertava, a curva de uma retorta, como se tirasse disso sensação voluptuosa.
- Tudo - continuava Nunes - por mais distante que esteja da idéia genital, o erótico delirante colhe, absorve, e compreende à luz de sua ideação monocêntrica. Louco lúcido com a excitação da primeira fase dos delírios, tudo elabora, amolda e plasma na visão fecenina. E ergue, na loucura incipiente, uma filosofia que, como todas as loucuras e todas as filosofia, encontra adeptos de alma simples.
Eu era um deles, compreendo-o agora.
- Domina-os o pansexualismo. E paradoxo onde se encontram os extremos, levam a generalização a afirmar que no ato da criança que inocentemente suga o alimento no seio materno há o esboço da inclinação sexual. Todas as ações humanas, da dor à piedade, dos atos vegetativos às mais altas concepções da arte e mais árduas labutas da ciência, parece-lhes que obedecem a único principio, móvel ou apetite, que se resume na obsessão sexual.
Comparei Nunes a Bedford. A palavra de Nunes era vibrante, incisiva, com forte acento de homem, de masculino sadio, de bife sangrento e dentes vorazes; seus gestos eram sacudidos, de "quebro-te a cara", de box ou luta romana. A voz de Bedford, ao contrário, aflautava-se, dia a dia, na gama das alcovas. Seus gestos eram moles, fatigados.
E ao ouvir Nunes, seduziam-me suas palavras, como me haviam seduzido antes as de Bedford. Verifiquei que meu impressionismo era como o da cera, do último toque, e entristeci. Era organismo autônomo ou me deixaria sempre levar por outrem?
- Todos os cinco sentidos - continuava Nunes - ficam dominados pela idéia erótica e de tão delirante alucinação nasce moral pervertida. A idéia é o produto das impressões sensoriais elaborado pela força definidora incutida na consciência pela tradição, pela experiência e pelo estudo. Mas a perversão sensorial acaba por viciar e desorganizar a concepção cerebral. Os eróticos delirantes não ouvem senão gemidos, suspiros, soluços de corpos que agonizam em transportes de volúpia, não palpam no que tocam senão curvas femininas, recantos sexuais, as formas lascivas. Os cérebros dos velhos caem nesse delírio como noutros pela fraqueza da idade, e o dos moços, como Bedford, pelo abuso do prazer. Basta-lhes de começo o gozo normal. De tanto buscá-lo, porém, escasseiam-lhes os nervos a provisão de energia. Procuram, então, nas impressões imaginativas dos vícios, das perversões e dos atos contra a natureza, sensações que lhes reavivem o apetite embotado. É como o declive dos tóxicos. O prazer quintuplica-se, as sensações extremam-se. Já não se satisfazem com o amor dentro da natureza: transpõem todos os preconceitos, libertam-se de todos as pudores e, em ânsia insaciável de gozo, entregam-se a intraduzíveis caricías, inomináveis contatos, que a imaginação, cada vez mais enferma, lhes vai sugerindo. E nesse gozo progressivamente maior, tocam os extremos da libido, em frenesi demoníaco, em jubilação satânica de refinamentos sensoriais que os deixa estendidos, frios, gelados, sem respirar, em síncope longa no leito doloroso da volúpia. E da obsessão nasce o delírio. O sabbath dança-lhes permanentemente diante dos olhos, e a natureza inteira transforma-se na frisa do zoóforo do templo de Afrodite, na qual o fogo do cio corre na espinha de todos os animais. Vem, depois, o esgotamento, a impotência. Entram, então, em cena os excitantes, as beberagens afrodisíacas, o satyricon. E à desorganização oriental une-se a devastação física. Sucumbem por ter batido demais às portas da vida!
No dia seguinte fomos juntos ao laboratório. Bedford não reconheceu desde logo o antigo aluno. Sua memória, como as demais faculdades, ia-se apagando. Quando Nunes lhe disse o nome, pareceu recordar-se vagamente. E repetiu: Nu... nu..., incapaz de maior esforço, porque a visão que a primeira sílaba lhe abriu aos sentidos empolgou-o.
- Nu... É a expressão da maior beleza. Esta fruta, por exemplo - ele descascava uma laranja - só na nudez revela a formosura. Vejam agora que a despi, as deliciosas e túmidas curvas de cada gomo, o dourado da linfa, sintam a excitação do perfume, a frescura do suco...
E, como se vampirizasse um corpo de mulher bebendo-lhe todo o sangue, espremeu-a na boca com os dedos até deixá-la murcha, engolindo com volúpia os grandes sorvos que desciam em glu-glu lento.
Nunes, de pernas cruzadas e o queixo no castão de vidro azul da bengala de junco, balançava a cabeça em tom de desânimo. (A bengala do Nunes era cousa notável.) Eu, com a imaginação violenta, via Bedford transformado no marechal Gilles de Rays. A laranja era criança eventrada, cujo sangue, mesclado com humores o sádico sugava, indiferente ao mau cheiro das vísceras. Nunes recordara-me na véspera a história horrenda do monstruoso sádico francês, executado em 1440, que violou e assassinou mais de oitocentas crianças.
E acudia-me à idéia um sádico brasileiro, de edição grosseira, que violentara e matara diversos meninos. Os peritos reconheceram-lhe a dirimente da loucura. O juiz aproveitara-se para dar longa mostra de erudição... em Legrand de Saule. E o sádico assassino deixara de ser condenado. Enviaram-no para sanatório do governo com bom quarto, boa alimentação, médico, farmácia e miúdos para os cigarros... E como não lhe deram mulher, não tardou que tentasse violar e estrangular um companheiro, outro pensionista do Estado.
Pobre marechal Gilles de Rays, por que não nasceste em época supercivilizada como a nossa?
Os bárbaras de 1440 executaram-te. Se hoje o nosso sádico com só cinco ou seis assassínios pode conseguir todas aquelas regalias, tu, marechal, com o acervo de 800 crianças, sacrificadas à tua perversão, terias um palácio, e criados de libré.
Disse isso a Nunes e ele assustou-se.
- Menino, você precisa deixar a companhia de Bedford. Loucura pega, principalmente essa.
Reconheci a incoerência do que me acudira, e ele se tranqüilizou.
Sugada a laranja, mostrou-nos Bedford o bagaço, e exclamou:
- Parece corpo exânime de mulher flagelada após longo e intenso gozo, lívida, retorcida. E só o amor dá essa enorme beatitude de êxtase, de rapto sobrenatural!
Carinhosamente, tal que conduzisse o corpo nu de uma mulher, alisou o bagaço e acamou-o na mesa.
Nunes, propositadamente e para lhe tomar o pulso, permitiu-se contradizê-lo.
Bedford aqueceu-se. Quis servir-se dos mesmos argumentos históricos que me expusera.
Entrou a comparar as grandes bacanais antigas com as expressões medrosas de nossa sensibilidade amorosa. Descreveu a onda de sensualismo que arrancava Messalina do leito imperial e a levava à tarimba dos quartéis, onde, em fúria ninfomaníaca, se dava aos soldados hercúleos, de músculos enrijados pela guerra e pelos sóis da África. Com a volúpia violenta das fêmeas dos tigres, e a fúria sensual das leoas, esgotava-os, fazia-os morrer sobre seu corpo, encasando pela madrugada, com os rins quebrados, o corpo lasso e dolorido, não saciada e perseguida ainda no sono pela visão lasciva que a reconduzia, nem bem nova noite se fechava, à violência selvagem, à caricia brutal, aos beijos acres do hálito de fumo e álcool...
Agitava-me, insensivelmente, na cadeira. Meus 19 anos latejavam-me nos pulsos. Messalina!... Nunes encarava friamente a fisionomia de Bedford, que cada vez mais se animava, ao mesmo tempo que a voz ganhava calor, a imaginação brilho, a evocação flagrante...
Nero, o circo, os banhos, as lentas unções de óleos nos tepidários por escravos formosos, os vinhos bebidos em ânforas largas para que, ao mesmo tempo, se deliciassem o olfato e o paladar, os banquetes, em cujos triclínios o amor não se interrompia, e entremeavam-se os beijos e os pratos, enquanto nas danças, adolescentes menores apenas púberes criavam ou reproduziam todas as formas plásticas de conjugação. Roma delirante de sexualismo, Roma Sodoma, Roma Gomorra de todos os vícios, do sadismo, das perversões, das lésbias e dos invertidos que assentavam até no trono imperial, um imperador casando-se oficialmente com outro homem - toda Roma erótica, em síntese admirável de colorido, de definição rápida em traços fulminantes jorrou dos lábios de Bedford.
Nunes que o conhecera apático, de poucas palavras, espantava-se ao ouvir-lhe a loquacidade torrencial, infatigável, inexaurível. Parecia outro Bedford, excitado por qualquer estimulina secretada por glândulas reprodutoras desorganizadas.
Bedford terminara. E à guisa de conclusão replicara ao olhar negativista de Nunes:
- Roma é o berço da civilização latina, que até hoje nos aclara, e que desde então, através dos séculos, nenhuma raça tem suplantado.
Nunes replicou-lhe. Aquele caudal de sensualismo, longe de definir o maior momento de esplendor grego ou romano, marcara época de decadência. Nos povos, como nos indivíduos - e Nunes acentuou bem as três últimas palavras - a período de falsa excitação e falso brilho que os excessos provocam, segue-se o delírio, cujo fim é a idiotia, a abulia. O leito da luxúria torna-se leito da invalidação e da morte. O equilíbrio desconcerta-se, a sinergia rompe-se por hipertrofia parcial, e todo o metabolismo vicia-se na ação predominante e avassaladora da idéia fixa, dó íncubo sensual que atormenta todas as células de erotismo imaginativo, e cria o delírio sexual.
Bedford ouvia-o com o mesmo sorriso compassivo com que, pouco antes, Nunes lhe acompanhara as palavras. Os loucos semilúcidos parece terem piedade imensa de nosso bom senso. Lembro-me de um, muito rico, que se acreditava laranjeira. Punha-se nu, alcatifava-se de folhas de laranjeira, e ficava horas no pátio da casa com os braços arqueados como galhos, as laranjas dependuradas dos dedos. De cada vez que lhe dava a mania, era preciso, para tirá-lo dali, mudá-lo para tina com terra, como se fosse, de fato, laranjeira - e trazê-lo para casa. E quando no salão, envolvia todos os mais em olhar inesquecível de piedade, como se só ele houvesse compreendido a verdade objetiva de sua essência. Descia da tina, colhia as próprias laranjas, e chupava-as. A mania acentuou-se. Via árvores de frutos em todos, e foi preciso interná-lo no hospício certa manhã em que, armado de tesoura, quis cortar os seios da criada de quarto pretendendo fossem os frutos de uma pereira.
- A lubricidade deforma e deprava o ato singelo que se destina, apenas, a perpetuar a espécie, tal como o praticam os irracionais, sem extravagâncias imaginativas. Conduz o indivíduo à decadência, à ruína moral, e as nações como as raças ao desaparecimento - concluiu o Nunes. Das civilizações antigas o que sobrevive não é o produto do sensualismo, mas o que deixaram perpetuado no bronze, no mármore, na tela, nos livros eternos da razão.
- As obras de arte - obtemperou Bedford - são apenas reflexos de exacerbação sexual. Obedecem à libido, ao instinto multiplicador.
E citava grandes nomes, aos pares. Dante que teve amores aos nove anos, Sainte-Beuve que exclamava a este propósito:
"Que n'ai-je comme lui mes amours à neuf ans"
Flaubert, Maupassant, Chateaubriand, cuja frase, no dizer de críticos, "tem o sabor de carne", e outros, e outros muitos.
- Corra a literatura em geral - dizia Bedford - e na prosa e no verso que há além da chama voluptuosa?
E superior, generoso, conciliante, concluiu:
- E não é preciso ir às artes, ou especializar as atividades humanas. O povo, o vulgo ignorante, conhece a verdade do aforismo: Cherchez la femme. Todos os crimes, todas as grandes tragédias, todas as desgraças do homem civilizado vêm apenas da moral que pretende suprimir o irreprimível, desviar de seu curso atrações naturais, afinidades invencíveis para assim favorecer interesses problemáticos da sociedade.
E, apostolar, com os olhos de iluminado, concluiu:
- O homem é no Universo o único animal triste. E foi ele próprio que fabricou sua tristeza. É o único animal descontente: e é o autor de seu descontentamento. Há na alma humana certa ânsia, certa inquietação que não se define. É a ânsia e a inquietação dos cativos.3 Regresse à natureza e estará emancipado e feliz. As obras humanas só se tornam imortais quando impregnadas do segredo e do mistério da vida, bebidos com volúpia nas próprias origens. Nosso riso é falso. Só a lágrima é realidade. E por quê? Porque moral estúpida nos veda todos o gozos e obriga-nos a esconder-nos nas furnas da hipocrisia para satisfazer instintos naturais. A moral em que se funda? Nas religiões. Pois os livras sagrados, história das religiões, estão pejados de sensualismo. O Bramaputra não é mais imoral do que a Bíblia. O Cântico dos Cânticos do rei dos reis, da sabedoria de Salomão, é o mais lúbrico dos poemas da carne. Aaaaa Bíblia é imprópria para senhoritas e menores, como os espetáculos de gênero livre.
Nunes compreendeu que era inútil insistir. Bedford ultrapassara, disse-me ele na rua, a zona possível de discussão. A paixão erótica empolgava-o. Devia estar em uso de beberagens excitantes, que lhe suprissem o langor do esgotamento precoce.
Sentamo-nos num banco de jardim público, ainda sob a influência das palavras quentes de Bedford. Arrisquei-me a lembrar a Nunes o que me dissera de Paris, de suas orgias, de sua bacanal desenfreada. E, entretanto, é onde, justamente, a civilização latina tem seu auge, ao passo que em outros países, como a Itália, a Espanha, Portugal, da repressão dos costumes não resultou progresso algum. O Portugal das conquistas, o Portugal glorioso que, pequenino, conseguira dominar a vastidão de oceanos inexplorados, faleceu beatamente encapuchado num hábito fradesco à porta de uma catedral. A Espanha, a Espanha ferrabrás, contra cujo escudo inamolgável se quebrara a lança do infiel, fenecia nas vielas escuras junto ao nicho dos santos.
Nunes, que me ouvira atentamente, estudando-me os gestos, aconselhou-me que deixasse quanto antes o comércio de Bedford. A imaginação exaltada e o impressionismo adolescente punham-me em sério perigo.
- De fato, replicou-me, Paris reproduz hoje, e talvez com mais intensidade, as orgias bacanais antigas. A onda de luxúria e de instintos que cresceu, se avolumou e se tornou irrefreável após a guerra, com a inversão dos valores empobrecendo as camadas mais altas, e enriquecendo o povo, trouxe à tona as baixas tendências e os violentos apetites dos novos ricos, sequiosos de conhecer todas as volúpias que ontem, com indignação, reprovavam. Nas casas de tolerância, o sadismo crucifica mulheres nuas em pranchas de madeira, ou acorcunda-as sobre cavalos mecânicos para que ofereçam o corpo ao chicote ao knut russo, ao relho de cinco pontas que lhes zebreia a pele de equimoses e de sangue, manejados por pulsos fortes de clientes degenerados, que lhes compram a miséria por uma centena de francos. O "tronco", como outros instrumentos de suplício, que se destruíram com a abolição dos escravos, revive nas câmaras de flagelação dessas casas, que se contam às dezenas e se anunciam nos jornais, que a polícia conhece, registra, cataloga, e que pagam imposto ao Estado burguês e honesto... Sim. isso é verdade, está em inúmeros livros franceses, que clamam contra a dissolução. O lesbismo, o glotismo, as inversões, vivem e viçam em mais de uma camada; funcionam às escâncaras cabarets de homossexuais ou de homens vestidos de mulher, mercam-se com voz aflautada, enquanto a polícia, no limiar, fuma o cigarro frouxo de sua fiscalização. A título de curiosidade, portadores de grandes nomes da aristocracia nacional e estrangeira neles aparecem. Mas a cultura francesa que se ergueu indignada contra um presidente de senado encontrado morto numa casa de tolerância entre dois adolescentes, profliga as úlceras de sua civilização, e longe das regiões que a cocaína devasta ou das casas de ópio, nas quais homens e mulheres, alucinados pela droga, se entregam uns à vista dos outros às mais violentas práticas de desbragado erotismo, trabalha nos gabinetes, nos laboratórios, nos centros de ciência e de arte para salvar a continuidade das conquistas da raça do naufrágio da brutalidade e da incontinência.
E concluiu, eloqüente:
- Nos países onde o pensamento chega aos mais altos cimos da evolução, há na luta tremenda vencidos e desequilibrados. São estes que, desmanchados os nervos, desfreados da auto fiscalização, emancipados, pelo delírio, da disciplina das tradições que regem os costumes e a moral, arrastam nas noites de verão ao Bois de Boulogne mulheres até então classificadas, que de sua loucura se contaminam, e ali de parceria com desconhecidos se dão às mais torpes orgias entregando as próprias esposas, pelo prazer da aventura, aos transeuntes de acaso. Mas todos esses quadros de insânia erótica constituem exceções, minorias. Só um louco pode esquecer-se das altas concepções mentais, do gênio francês, da obra imortal de seus escritores e artistas para atribuí-las ao delírio genital.
Com estas palavras despediu-se recomendando-me que evitasse o convívio de Bedford.
(As mulheres fatais, 1928.)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Letras & Linhas: Biografias

Letras & Linhas: Biografias: Cláudio de Sousa Era filho de Cláudio Justiniano de Sousa (de quem herdou a homonímia) e Antônia Barbosa de Sousa. Realizou os estu...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Álvares de Azevedo


É ela! É ela! É ela! É ela!
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
e o eco ao longe murmurou — é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura —
a minha lavadeira na janela.
Dessas águas furtadas onde eu moro
eu a vejo estendendo no telhado
os vestidos de chita, as saias brancas;
eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido,
nas telhas que estalavam nos meus passos,
ir espiar seu venturoso sono,
vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
um bilhete que estava ali metido...
Oh! decerto... (pensei) é doce página
onde a alma derramou gentis amores;
são versos dela... que amanhã decerto
ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! é ela! — repeti tremendo;
mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim tão bela... eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! é ela, meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou — é ela!

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Álvares de Azevedo

Desânimo

Estou agora triste. Há nesta vida
Páginas torvas que se não apagam,
Nódoas que não se lavam... se esquecê-las
De todo não é dado a quem padece...
Ao menos resta ao sonhador consolo
No imaginar dos sonhos de mancebo!

Oh! voltai uma vez! eu sofro tanto!
Meus sonhos, consolai-me! distraí-me!
Anjos das ilusões, as asas brancas
As névoas puras, que outro sol matiza.
Abri ante meus olhos que abraseiam
E lágrimas não tem que a dor do peito
Transbordem um momento...

E tu, imagem,
Ilusão de mulher, querido sonho,
Na hora derradeira, vem sentar-te,
Pensativa e saudosa no meu leito!
O que sofres? que dor desconhecida
Inunda de palor teu rosto virgem?
Por que tu'alma dobra taciturna,
Como um lírio a um bafo d'infortúnio?
Por que tão melancólica suspiras?

Ilusão, ideal, a ti meus sonhos,
Como os cantos a Deus se erguem gemendo!
Por ti meu pobre coração palpita...
Eu sofro tanto! meus exaustos dias
Não sei por que logo ao nascer manchou-os
De negra profecia um Deus irado.
Outros meu fado invejam... Que loucura!
Que valem as ridículas vaidades
De uma vida opulenta, os falsos mimos
De gente que não ama? Até o gênio
Que Deus lançou-me à doentia fronte,
Qual semente perdida num rochedo,
Tudo isso que vale, se padeço!

Nessas horas talvez em mim não pensas:
Pousas sombria a desmaiada face
Na doce mão e pendes-te sonhando
No teu mundo ideal de fantasia...
Se meu orgulho, que fraqueia agora,
Pudesse crer que ao pobre desditoso
Sagravas uma idéia, uma saudade...
Eu seria um instante venturoso!

Mas não... ali no baile fascinante,
Na alegria brutal da noite ardente,
No sorriso ebrioso e tresloucado
Daqueles homens que, pra rir um pouco,
Encobrem sob a máscara o semblante,
Tu não pensas em mim. Na tua idéia
Se minha imagem retratou-se um dia
Foi como a estrela peregrina e pálida
Sobre a face de um lago...

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Carlos Drummond de Andrade

Definitivo


Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.
Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções
irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado
do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter
tido junto e não tivemos,por todos os shows e livros e silêncios que
gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.
Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas
as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um
amigo, para nadar, para namorar.
Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os
momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas
angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.
Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.
Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma
pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez
companhia por um tempo razoável,um tempo feliz.
Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um
verso:
Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida
está no amor que não damos, nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do
sofrimento,perdemos também a felicidade.
A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional...

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Cora Coralina


Coração é terra que ninguém vê
Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.
Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.
Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão
Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Luís Fernando Veríssimo


Mulheres


"Certo dia parei para observar as mulheres e só pude concluir uma coisa: elas não são humanas. São espiãs. Espiãs de Deus, disfarçadas entre nós.
Pare para refletir sobre o sexto-sentido.
Alguém duvida de que ele exista?
E como explicar que ela saiba exatamente qual mulher, entre as presentes, em uma reunião, seja aquela que dá em cima de você?
E quando ela antecipa que alguém tem algo contra você, que alguém está ficando doente ou que você quer terminar o relacionamento?
E quando ela diz que vai fazer frio e manda você levar um casaco? Rio de Janeiro, 40 graus, você vai pegar um avião pra São Paulo. Só meia-hora de vôo. Ela fala pra você levar um casaco, porque "vai fazer frio". Você não leva. O que acontece?
O avião fica preso no tráfego, em terra, por quase duas horas, depois que você já entrou, antes de decolar. O ar condicionado chega a pingar gelo de tanto frio que faz lá dentro!
"Leve um sapato extra na mala, querido.
Vai que você pisa numa poça..."
Se você não levar o "sapato extra", meu amigo, leve dinheiro extra para comprar outro. Pois o seu estará, sem dúvida, molhado...
O sexto-sentido não faz sentido!
É a comunicação direta com Deus!
Assim é muito fácil...
As mulheres são mães!
E preparam, literalmente, gente dentro de si.
Será que Deus confiaria tamanha responsabilidade a um reles mortal?
E não satisfeitas em ensinar a vida elas insistem em ensinar a vivê-la, de forma íntegra, oferecendo amor incondicional e disponibilidade integral.
Fala-se em "praga de mãe", "amor de mãe", "coração de mãe"...
Tudo isso é meio mágico...
Talvez Ele tenha instalado o dispositivo "coração de mãe" nos "anjos da guarda" de Seus filhos (que, aliás, foram criados à Sua imagem e semelhança).
As mulheres choram. Ou vazam? Ou extravazam?
Homens também choram, mas é um choro diferente. As lágrimas das mulheres têm um não sei quê que não quer chorar, um não sei quê de fragilidade, um não sei quê de amor, um não sei quê de tempero divino, que tem um efeito devastador sobre os homens...
É choro feminino. É choro de mulher...
Já viram como as mulheres conversam com os olhos?
Elas conseguem pedir uma à outra para mudar de assunto com apenas um olhar.
Elas fazem um comentário sarcástico com outro olhar.
E apontam uma terceira pessoa com outro olhar.
Quantos tipos de olhar existem?
Elas conhecem todos...
Parece que freqüentam escolas diferentes das que freqüentam os homens!
E é com um desses milhões de olhares que elas enfeitiçam os homens.
EN-FEI-TI-ÇAM !
E tem mais! No tocante às profissões, por que se concentram nas áreas de Humanas?
Para estudar os homens, é claro!
Embora algumas disfarcem e estudem Exatas...
Nem mesmo Freud se arriscou a adentrar nessa seara. Ele, que estudou, como poucos, o comportamento humano, disse que a mulher era "um continente obscuro".
Quer evidência maior do que essa?
Qualquer um que ama se aproxima de Deus.
E com as mulheres também é assim.
O amor as leva para perto dEle, já que Ele é o próprio amor. Por isso dizem "estar nas nuvens", quando apaixonadas.
É sabido que as mulheres confundem sexo e amor.
E isso seria uma falha, se não obrigasse os homens a uma atitude mais sensível e respeitosa com a própria vida.
Pena que eles nunca verão as mulheres-anjos que têm ao lado.
Com todo esse amor de mãe, esposa e amiga, elas ainda são mulheres a maior parte do tempo.
Mas elas são anjos depois do sexo-amor.
É nessa hora que elas se sentem o próprio amor encarnado e voltam a ser anjos.
E levitam.
Algumas até voam.
Mas os homens não sabem disso.
E nem poderiam.
Porque são tomados por um encantamento
que os faz dormir nessa hora."

sábado, 27 de agosto de 2011

Mário Quintana


DÉCIMO CONTO
O pai da mãe dos meus netos resolveu fazer uma surpresa para eles. Queria dar-lhes um presente de desaniversário. Presente de aniversário todas as crianças sempre ganham, ora bolas. Entretanto, presente de desaniversário só os netos dos avós espertos.
Mas, que presente ele poderia dar, se os filhos de sua filha tinham de tudo? Pensou em dar um par de meias, com um furo no dedão, mas descobriu que meias com furo no dedão eles tinham quase meia dúzia. Só de pé esquerdo! Pensou em dar uma bola de futebol furada e rasgada pelo cachorro da casa, mas no quintal dormiam umas três ou quatro dessas bolas, plantadas dentro de um vaso de barro. Acho que eles pensavam que dali nasceria um pé de bola de futebol. Só que eles tinham preguiça de regar o vaso e, como se sabe, sem água não há bola de futebol que se transforme em pé de bola de futebol.
Pensou em dar cocô de cachorro para eles espalharem pelo gramado do quintal. Mas já havia tanto cocô de cachorro espalhado que seria difícil encontrar algum que fosse diferente daqueles que já existiam. Que coisa difícil é escolher um presente de desaniversário!
"Já sei", disse ele, "vou dar um carrinho de corda sem a roda dianteira". Bobagem! Eles já tinham uns dois carrinhos faltando pelo menos uma das rodas. "Um jogo de lego faltando uma porção de pecinhas é um bom presente" pensou o esperto velhinho. Mas desistiu da idéia, porque sua filha lhe disse que eles só gostavam de brincar com as peças que não conseguiam formar nenhuma figura completa. Cavalo sem orelha, castelo sem telhado, trenzinho sem fumaça, navio sem ondas de mar, gavião sem céu pra voar. Era isso que eles gostavam de montar com aquelas peças de lego que espalhavam pelo chão, sempre procurando aquelas que não estavam ali. Formar alguma coisa com peças existentes qualquer um forma, diziam eles.
Foi ao shopping e procurou na loja de brinquedos alguma coisa que faltava no quarto dos meninos. "A senhora tem antipatia para vender?" perguntou o avô de meus netos à gentil senhorita que os atendeu. Ela fez uma cara de quem não estava entendendo nada e ele precisou explicar. "Eu preciso dar a meus netos alguma coisa que eles ainda não têm". Ela fez uma cara alegre e disse que ali não se vendia antipatia. Aliás, todos os vendedores tinham simpatia para dar e vender. "Então eu prefiro que eles me dêem, assim eu economizo uns tostões", disse o sovina. "E me veja aí um pacotinho, desses bem pequeninos, de pó de tristeza, coisa que falta naquela casa que tem tudo". Ela cochichou bem baixinho no ouvido do velhinho que venda de tristeza estava proibida pela dona da casa, aquela senhora gordona que quase não cabia naquele espacinho que ficava entre a caixa registradora e a parede dos fundos. Quando a mulher dava gargalhadas, a impressão era que aquela gordura passaria por cima do balcão e cairia no chão, esparramando-se toda. E as pessoas escorregariam ali e ficariam também dando risada deitadas no chão.
Ele era meio surdo e não entendeu direito o que a gentil senhorita disse, mas pela cara dela ele concluiu que tristeza, ali, nem pensar, inda mais com aquela senhora alegre esparramada atrás da caixa registradora, sempre pronta para explodir de alegria.
"Então vamos fazer o seguinte", disse ele: "faz de conta que meus netos são seus filhos e a senhorita vai escolher um presente para cada um de seus imaginados filhos. Mas eu quero que a senhorita me faça um desconto". Ela concordou com a proposta do velhinho ladino e os dois ficaram passeando por aqueles corredores como se fossem dois namorados, pois ele era meio atrevidinho, fingia que estava tendo uma tontura e pegava no braço das moças, quando elas eram bonitas. Só perto das moças bonitas ele tinha tontura. "Quando eu era mocinho", foi dizendo o avô dos meus netos, "assim como a senhorita, mas não tão bonito, o dinheiro era o mil réis. Dez contos de réis era muito dinheiro, dava pra comprar a metade de uma loja do tamanho desta" exagerou ele, que gostava de aumentar um ponto naquilo que ele contava.
"Quando meu avô ia comprar alguma coisa, ele sempre pedia desconto. De tostão em tostão se chega ao milhão, havia ensinado o pai dele. Um dia, ele foi comprar alguma coisa que custava dez contos de réis, que era um dinheirão, não sei se eu já disse isso para a senhorita. Não me lembro se era uma bengala nova, ou um par de botinas, ou um navio, ou um cachimbo, ou um par de nuvens. Mas sei que custava dez contos de réis. Aí, como fazia sempre, ele pediu ao vendedor que lhe desse desconto. E o homem, seduzido pela simpatia de meu avô, coisa que ele deixou em testamento para os filhos e os netos, como a senhorita pode perceber, caiu na cilada e lhe deu o tal desconto. Aí meu avô disse que então não tinha de pagar nada pela mercadoria que estava levando, porque os dez contos do preço menos o desconto que o vendedor havia dado era igual a zero. Dez contos menos dez contos é igual a nada, percebeu ? E saiu da loja com o presente debaixo do braço, para espanto do vendedor". "Acho que meu avô era advogado", rematou o simpático velhinho.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Vinícius de Moraes


Eu não existo sem você


Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
Me encaminham pra você

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
Eu não existo sem você.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Adriana Queiroz


Férias na Lua


Tô pensando em tirar férias na lua
Cansada desse mundo cheio de gente
Gritando na minha mente
Em casa, na rua.

Tenho sangue utópico nas veias
Vivo já bem longe
Tão distante que vejo 
Todos em suas teias.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Álvaro de Campos


Opiário (poema), de Álvaro de Campos para Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.
Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.
É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.
Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.
Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.
Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes,
Ergue-se a lua como a minha Sina.
Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.
Perdi os dias que já aproveitara
. Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.
E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.
Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure.
Se nesta viagem nem houve procelas!
A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.
Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.
Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.
Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?
Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.
Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avòzinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.
Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smokink-room com o conde -
Um escroc francês, conde de fim de enterro.
Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.
Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.
Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.
Não posso estar em parte alguma.
A minha Pátria é onde não estou.
Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.
Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.
Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.
Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O fato é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.
Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranqüilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.
Pertenço a um gênero de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.
Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.
Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,
Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!
Ora! Eu cansava-me o mesmo modo.
Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.
Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O fato essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.
Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia pla coleira!
Porque isto acaba mal e há-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.
E quem me olhar, há-de-me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.
Ah quanta alma viverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?
Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.
Não fazer nada é a minha perdição.
Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!
Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.
O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a...
Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.
Ah que bom que era ir daqui de caída
Pra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.
E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh'alma!