sábado, 27 de agosto de 2011

Mário Quintana


DÉCIMO CONTO
O pai da mãe dos meus netos resolveu fazer uma surpresa para eles. Queria dar-lhes um presente de desaniversário. Presente de aniversário todas as crianças sempre ganham, ora bolas. Entretanto, presente de desaniversário só os netos dos avós espertos.
Mas, que presente ele poderia dar, se os filhos de sua filha tinham de tudo? Pensou em dar um par de meias, com um furo no dedão, mas descobriu que meias com furo no dedão eles tinham quase meia dúzia. Só de pé esquerdo! Pensou em dar uma bola de futebol furada e rasgada pelo cachorro da casa, mas no quintal dormiam umas três ou quatro dessas bolas, plantadas dentro de um vaso de barro. Acho que eles pensavam que dali nasceria um pé de bola de futebol. Só que eles tinham preguiça de regar o vaso e, como se sabe, sem água não há bola de futebol que se transforme em pé de bola de futebol.
Pensou em dar cocô de cachorro para eles espalharem pelo gramado do quintal. Mas já havia tanto cocô de cachorro espalhado que seria difícil encontrar algum que fosse diferente daqueles que já existiam. Que coisa difícil é escolher um presente de desaniversário!
"Já sei", disse ele, "vou dar um carrinho de corda sem a roda dianteira". Bobagem! Eles já tinham uns dois carrinhos faltando pelo menos uma das rodas. "Um jogo de lego faltando uma porção de pecinhas é um bom presente" pensou o esperto velhinho. Mas desistiu da idéia, porque sua filha lhe disse que eles só gostavam de brincar com as peças que não conseguiam formar nenhuma figura completa. Cavalo sem orelha, castelo sem telhado, trenzinho sem fumaça, navio sem ondas de mar, gavião sem céu pra voar. Era isso que eles gostavam de montar com aquelas peças de lego que espalhavam pelo chão, sempre procurando aquelas que não estavam ali. Formar alguma coisa com peças existentes qualquer um forma, diziam eles.
Foi ao shopping e procurou na loja de brinquedos alguma coisa que faltava no quarto dos meninos. "A senhora tem antipatia para vender?" perguntou o avô de meus netos à gentil senhorita que os atendeu. Ela fez uma cara de quem não estava entendendo nada e ele precisou explicar. "Eu preciso dar a meus netos alguma coisa que eles ainda não têm". Ela fez uma cara alegre e disse que ali não se vendia antipatia. Aliás, todos os vendedores tinham simpatia para dar e vender. "Então eu prefiro que eles me dêem, assim eu economizo uns tostões", disse o sovina. "E me veja aí um pacotinho, desses bem pequeninos, de pó de tristeza, coisa que falta naquela casa que tem tudo". Ela cochichou bem baixinho no ouvido do velhinho que venda de tristeza estava proibida pela dona da casa, aquela senhora gordona que quase não cabia naquele espacinho que ficava entre a caixa registradora e a parede dos fundos. Quando a mulher dava gargalhadas, a impressão era que aquela gordura passaria por cima do balcão e cairia no chão, esparramando-se toda. E as pessoas escorregariam ali e ficariam também dando risada deitadas no chão.
Ele era meio surdo e não entendeu direito o que a gentil senhorita disse, mas pela cara dela ele concluiu que tristeza, ali, nem pensar, inda mais com aquela senhora alegre esparramada atrás da caixa registradora, sempre pronta para explodir de alegria.
"Então vamos fazer o seguinte", disse ele: "faz de conta que meus netos são seus filhos e a senhorita vai escolher um presente para cada um de seus imaginados filhos. Mas eu quero que a senhorita me faça um desconto". Ela concordou com a proposta do velhinho ladino e os dois ficaram passeando por aqueles corredores como se fossem dois namorados, pois ele era meio atrevidinho, fingia que estava tendo uma tontura e pegava no braço das moças, quando elas eram bonitas. Só perto das moças bonitas ele tinha tontura. "Quando eu era mocinho", foi dizendo o avô dos meus netos, "assim como a senhorita, mas não tão bonito, o dinheiro era o mil réis. Dez contos de réis era muito dinheiro, dava pra comprar a metade de uma loja do tamanho desta" exagerou ele, que gostava de aumentar um ponto naquilo que ele contava.
"Quando meu avô ia comprar alguma coisa, ele sempre pedia desconto. De tostão em tostão se chega ao milhão, havia ensinado o pai dele. Um dia, ele foi comprar alguma coisa que custava dez contos de réis, que era um dinheirão, não sei se eu já disse isso para a senhorita. Não me lembro se era uma bengala nova, ou um par de botinas, ou um navio, ou um cachimbo, ou um par de nuvens. Mas sei que custava dez contos de réis. Aí, como fazia sempre, ele pediu ao vendedor que lhe desse desconto. E o homem, seduzido pela simpatia de meu avô, coisa que ele deixou em testamento para os filhos e os netos, como a senhorita pode perceber, caiu na cilada e lhe deu o tal desconto. Aí meu avô disse que então não tinha de pagar nada pela mercadoria que estava levando, porque os dez contos do preço menos o desconto que o vendedor havia dado era igual a zero. Dez contos menos dez contos é igual a nada, percebeu ? E saiu da loja com o presente debaixo do braço, para espanto do vendedor". "Acho que meu avô era advogado", rematou o simpático velhinho.