terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Friedrich Nietzsche



Assim Falava Zaratustra


V

Pronunciadas estas palavras, Zaratustra tornou a olhar o povo, e calou-se. “Riem-se — disse o seu coração. — Não me compreendem; a minha boca não é a boca que estes ouvidos necessitam.
Terei que principiar por lhes destruir os ouvidos para que aprendam a ouvir com os olhos? Terei que atroar à maneira de timbales ou de pregadores de Quaresma? Ou só acreditarão nos gagos?
De qualquer coisa se sentem orgulhosos. Como se chama então, isso de que estão orgulhosos? Chama-se civilização: é o que se distingue dos cabreiros.
Isto, porém, não gostam eles de ouvir, porque os ofende a palavra “desdém”.
Falar-lhes-ei, portanto, ao orgulho.
Falar-lhes-ei do mais desprezível que existe, do último homem.
E Zaratustra falava assim ao povo:
“É tempo que o homem tenha um objetivo.
É tempo que o homem cultive o germe da sua mais elevada esperança.
O seu solo é ainda bastante rico, mas será pobre, e nele já não poderá medrar nenhuma árvore alta.
Ai! aproxima-se o tempo em que o homem já não lançará por sobre o homem a seta do seu ardente desejo e em que as cordas do seu arco já não poderão vibrar.
Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.
Eu vo-lo digo: tendes ainda um caos dentro de vós outros.
Ai! Aproxima-se o tempo em que o homem já não dará a luz às estrelas; aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, do que já se não pode desprezar a si mesmo.
Olhai! Eu vos mostro o último homem.
Que vem a ser isso de amor, de criação, de ardente desejo, de estrela? — pergunta o último homem, revirando os olhos.
A terra tornar-se-á então mais pequena, e sobre ela andará aos pulos o último homem, que tudo apouca. A sua raça é indestrutível como a da pulga; o último homem é o que vive mais tempo.
“Descobrimos a felicidade” — dizem os últimos homens, e piscam os olhos.
Abandonaram as comarcas onde a vida era rigorosa, porque uma pessoa necessita calor. Ainda se quer ao vizinho e se roçam pelo outro, porque uma pessoa necessita calor.
Enfraquecer e desconfiar parece-lhes pecaminoso; anda-se com cautela. Insensato aquele que ainda tropeça com as pedras e com os homens!
Algum veneno uma vez por outra, é coisa que proporciona agradáveis sonhos. E muitos venenos no fim para morrer agradavelmente.
Trabalha-se ainda porque o trabalho é uma distração; mas faz-se de modo que a distração não debilite.
Já uma pessoa se não torna nem pobre nem rica; são duas coisas demasiado difíceis. Quem quererá ainda governar? Quem quererá ainda obedecer? São duas coisas demasiado custosas.
Nenhum pastor, e só um rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: o que pensa de outro modo vai por seu pé para o manicômio.
“Noutro tempo toda a gente era doida” — dizem os perspicazes, e reviram os olhos.
É-se prudente, e está-se a par do que acontece: desta maneira pode-se zombar sem cessar. Questiona-se ainda, mas logo se fazem as pazes; o contrário altera a digestão.
Não falta um pouco de prazer para o dia e um pouco de prazer para a noite; mas respeita-se a saúde.
“Descobrimos a felicidade” — dizem os últimos homens — e reviram os olhos”.
Aqui acabou o primeiro discurso de Zaratustra, — que também se chama preâmbulo — porque neste ponto foi interrompido pelos gritos e pelo alvoroço da multidão. “Dá-nos esse último homem, Zaratustra — exclamaram — torna-nos semelhantes a esses últimos homens! perdoar-te-emos o Super-homem”.
E todo o povo era alegria. Zaratustra entristeceu e disse consigo:
“Não me compreendem; não. Não é da minha boca que estes ouvidos necessitam.
Vivi demais nas montanhas, escutei demais os arroios e as árvores, e agora falo-lhes como um pastor.
A minha alma é sossegada e luminosa como o monte pela manhã; mas eles julgam que sou um frio e astuto chocareiro.
Ei-los olhando-me e rindo-se, e enquanto se riem, continuam a odiar-me. Há gelo nos seus risos”.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Friedrich Nietzsche


Assim Falava Zaratustra

PRIMEIRA PARTE

PREÂMBULO DE ZARATUSTRA

I

Aos trinta anos apartou-se Zaratustra da sua pátria e do lago da sua pátria, e foi-se até a montanha. Durante dez anos gozou por lá do seu espírito e da sua soledade sem se cansar. Variaram, porém, os seus sentimentos, e uma manhã, erguendo-se com a aurora, pôs-se em frente do sol e falou-lhe deste modo:
“Grande astro! Que seria da tua felicidade se te faltassem aqueles a quem iluminas? Faz dez anos que te abeiras da minha caverna, e, sem mim, sem a minha águia e a minha serpente, haver-te-ias cansado da tua luz e deste caminho.
Nós, porém, esperávamos-te todas as manhãs, tomávamos-te o supérfluo e bemdizíamos-te.
Pois bem: já estou tão enfastiado da minha sabedoria, como a abelha que acumulasse demasiado mel. Necessito mãos que se estendam para mim.
Quisera dar e repartir até que os sábios tornassem a gozar da sua loucura e os pobres da sua riqueza.
Por isso devo descer às profundidades, como tu pela noite, astro exuberante de riqueza quando transpões o mar para levar a tua luz ao mundo inferior.
Eu devo descer, como tu, segundo dizem os homens a quem me quero dirigir.
Abençoa-me, pois, olho afável, que podes ver sem inveja até uma felicidade demasiado grande!
Abençoa a taça que quer transbordar, para que dela manem as douradas águas, levando a todos os lábios o reflexo da tua alegria!
Olha! Esta taça quer de novo esvaziar-se, e Zaratustra quer tornar a ser homem”.
Assim principiou o caso de Zaratustra.