terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Eça de Queirós


A Cidade e as Serras

Capítulo II


Era de novo Fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu
desci os Campos Elísios em demanda do 202. Adiante de mim caminhava,
levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até às abas
recurvas do chapéu donde fugiam anéis de um cabelo crespo, ressumava
elegância e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos, cruzadas atrás
das costas, calçadas de anta branca, sustentava uma bengala grossa com
castão de cristal. E só quando ele parou ao portão do 202 reconheci o
nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.

--Oh Jacinto!

--Oh Zé Fernandes!

O abraço que nos enlaçou foi tão alvoroçado que o meu chapéu rolou na
lama. E ambos murmurávamos, comovidos, entrando a grade:

--Há sete anos!...

--Há sete anos!...

E, todavia, nada mudara durante esses sete anos no jardim do 202! Ainda
entre as duas áleas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e
varrida que a lã de um tapete. No meio o vaso coríntico esperava Abril
para resplandecer com tulipas e depois Junho para transbordar de
margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma vidraçaria toldava,
as duas magras Deusas de pedra, do tempo de D. Galeão, sustentavam as
antigas lâmpadas de globos foscos, onde já silvava o gás.

Mas dentro, no peristilo, logo me surpreendeu um elevador instalado
por Jacinto, apesar do 202 ter somente dois andares, e ligados por uma
escadaria tão doce que nunca ofendera a asma da Srª D. Angelina!
Espaçoso, tapetado, ele oferecia, para aquela jornada de sete
segundos, confortos numerosos, um divã, uma pele de urso, um roteiro
das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na
antecâmara, onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia e tépida
de uma tarde de Maio, em Guiães. Um criado, mais atento ao termómetro
que um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do
calorífero. E perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de
Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente humedecendo
aquele ar delicado e superfino.

Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado ser:

--Eis a Civilização!

Jacinto empurrou uma porta, penetrámos numa nave cheia de majestade e
sombra, onde reconheci a Biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa
de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma coroa
de lumes eléctricos, refulgindo entre os lavores do tecto, alumiou as
estantes monumentais, todas de ébano. Nelas repousavam mais de trinta
mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com
retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores
num concílio.

Não contive a minha admiração:

--Oh Jacinto! Que depósito!

Ele murmurou, num sorriso descorado:

--Há que ler, há que ler...

Reparei então que o meu amigo emagrecera: e que o nariz se lhe afilara
mais entre duas rugas muito fundas, como as de um comediante cansado. Os
anéis do seu cabelo lanígero rareavam sobre a testa, que perdera a
antiga serenidade de mármore bem polido. Não frisava agora o bigode
murcho, caído em fios pensativos. Também notei que corcovava.

Ele erguera uma tapeçaria, entrámos no seu gabinete de trabalho, que me
inquietou. Sobre a espessura dos tapetes sombrios os nossos passos
perderam logo o som, e como a realidade. O damasco das paredes, os
divãs, as madeiras, eram verdes, de um verde profundo de folha de louro.
Sedas verdes envolviam as luzes eléctricas, dispersas em lâmpadas tão
baixas que lembravam estrelas caídas por cima das mesas, acabando de
arrefecer e morrer: só uma rebrilhava, nua e clara, no alto de uma
estante quadrada, esguia, solitária como uma torre numa planície, e de
que o lume parecia ser o farol melancólico. Um biombo de laca verde,
fresco verde de relva, resguardava a chaminé de mármore verde, verde de
mar sombrio, onde esmoreciam as brasas de uma lenha aromática. E entre
aqueles verdes reluzia, por sobre peanhas e pedestais, toda uma
Mecânica sumptuosa, aparelhos, lâminas, rodas, tubos, engrenagens,
hastes, friezas, rigidezes de metais...

Mas Jacinto batia nas almofadas do divã, onde se enterrara com um modo
cansado que eu não lhe conhecia:

--Para aqui, Zé Fernandes, para aqui! É necessário reatarmos estas
nossas vidas, tão apartadas há sete anos!... Em Guiães, sete anos! Que
fizeste tu?

--E tu, que tens feito, Jacinto?

O meu amigo encolheu molemente os ombros. Vivera, cumprira com
serenidade todas as funções, as que pertencem à matéria e as que
pertencem ao espírito...

--E acumulaste Civilização, Jacinto! Santo Deus... Está tremendo, o
202!

Ele espalhou em torno um olhar onde já não faiscava a antiga
vivacidade:

--Sim, há confortos... Mas falta muito! A humanidade ainda está mal
apetrechada, Zé Fernandes... E a vida conserva resistências.

Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telefone. E enquanto o
meu amigo, curvado sobre a placa, murmurava impaciente: -Está lá? -Está
lá?, examinei curiosamente, sobre a sua imensa mesa de trabalho, uma
estranha e miúda legião de instrumentozinhos de níquel, de aço, de cobre,
de ferro, com gumes, com argolas, com tenazes, com ganchos, com dentes,
expressivos todos, de utilidades misteriosas. Tomei um que tentei
manejar, e logo uma ponta malévola me picou um dedo. Nesse instante
rompeu doutro canto um "tic-tic-tic" açodado, quase ansioso. Jacinto
acudiu, com a face no telefone:

--Vê aí o telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve
estar a correr.

E, com efeito, de uma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um
aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete, como uma ténia, a
longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras,
apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo
Jacinto que a fragata russa, Azoff, entrara em Marselha com avaria!

Já ele abandonara o telefone. Desejei saber, inquieto, se o
prejudicava directamente aquela avaria da Azoff.

--Da Azoff?... A avaria? A mim?... Não! É uma notícia.

Depois, consultando um relógio monumental que, ao fundo da Biblioteca,
marcava a hora de todas as Capitais e o curso de todos os Planetas:

--Eu preciso escrever uma carta, seis linhas... Tu esperas, não, Zé
Fernandes? Tens aí os jornais de Paris, da noite; e os de Londres,
desta manhã. As Ilustrações além, naquela pasta de couro com
ferragens.

Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava à minha profanidade
serrana todos os gostos de uma iniciação. Aos lados da cadeira de
Jacinto pendiam gordos tubos acústicos, por onde ele decerto soprava
as suas ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões túmidos e moles,
coleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra à maneira
de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e reflectida no seu verniz
como na água de um poço, pousava uma Máquina de escrever: e adiante era
uma imensa Máquina de calcular, com fileiras de buracos donde
espreitavam, esperando, números rígidos e de ferro. Depois parei em
frente da estante que me preocupava, assim solitária, à maneira de uma
torre numa planície, com o seu alto farol. Toda uma das suas faces
estava repleta de Dicionários; a outra de Manuais; a outra de Atlas; a
última de Guias, e entre eles, abrindo um fólio, encontrei o Guia das
ruas de Samarcanda. Que maciça torre de informação! Sobre prateleiras
admirei aparelhos que não compreendia:- um composto de lâminas de
gelatina, onde desmaiavam, meio-chupadas, as linhas de uma carta, talvez
amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o
decepar, um cutelo funesto; outro avançando a boca de uma tuba, toda
aberta para as vozes do invisível. Cingidos aos umbrais, liados às
cimalhas, luziam arames, que fugiam através do tecto, para o espaço.
Todos mergulhavam em forças universais, todos transmitiam forças
universais. A Natureza convergia disciplinada ao serviço do meu amigo e
entrara na sua domesticidade!...

Jacinto atirou uma exclamação impaciente:

--Oh, estas penas eléctricas!... Que seca!

Amarrotara com cólera a carta começada, eu escapei, respirando, para a
Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da
Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto
essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa
lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos Economistas.
Avancei, e percorri, espantado, oito metros de Economia Política. Depois
avistei os Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma
parede, desde as escolas Pré-Socráticas até às escolas Neopessimistas.
Naquelas pranchas se acastelavam mais de dois mil sistemas, e que
todos se contradiziam. Pelas encadernações logo se deduziam as
doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro negro; Platão, em
cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para diante começavam as
Histórias Universais. Mas aí uma imensa pilha de livros brochados,
cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante,
como fresca terra de aluvião tapando uma riba secular. Contornei essa
colina, mergulhei na secção das Ciências Naturais, peregrinando, num
assombro crescente, da Orografia para a Paleontologia, e da Morfologia
para a Cristalografia. Essa estante rematava junto de uma janela
rasgada sobre os Campos Elísios. Apartei as cortinas de veludo, e por
trás descobri outra portentosa rima de volumes, todos de História
Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente até aos
últimos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas, o ar e a luz do
Senhor.

Mas depois rebrilhava, em marroquins claros, a estante amável dos
Poetas. Como um repouso para o espírito esfalfado de todo aquele saber
positivo, Jacinto aconchegara aí um recanto, com um divã e uma mesa
de limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de charutos, de
cigarros do Oriente, de tabaqueiras do século XVIII. Sobre um cofre de
madeira lisa pousava ainda, esquecido, um prato de damascos secos do
Japão. Cedi à sedução das almofadas; trinquei um damasco, abri um
volume; e senti estranhamente, ao lado, um zumbido, como de um insecto
de asas harmoniosas. Sorri à ideia que fossem abelhas, compondo o seu mel
naquele maciço de versos em flor. Depois percebi que o sussurro remoto
e dormente vinha do cofre de mogno, de parecer tão discreto. Arredei uma
"Gazeta de França"; e descortinei um cordão que emergia de um orifício,
escavado no cofre, e rematava num funil de marfim. Com curiosidade,
encostei o funil a esta minha confiada orelha, afeita à singeleza dos
rumores da serra. E logo uma Voz, muito mansa, mas muito decidida,
aproveitando a minha curiosidade para me invadir e se apoderar do meu
entendimento, sussurrou capciosamente:

--...E assim, pela disposição dos cubos diabólicos, eu chego a
verificar os espaços hipermágicos!...

Pulei, com um berro.

--Oh Jacinto, aqui há um homem! Está aqui um homem a falar dentro
de uma caixa!

O meu camarada, habituado aos prodígios, não se alvoroçou:

--É o Conferençofone... Exactamente como o Teatrofone; somente
aplicado às escolas e às conferências. Muito cómodo!... Que diz o
homem, Zé Fernandes?

Eu considerava o cofre, ainda esgazeado:

--Eu sei! Cubos diabólicos, espaços mágicos, toda a sorte de horrores...

Senti dentro o sorriso superior de Jacinto:

--Ah, é o coronel Dorchas... Lições de Metafísica Positiva sobre a
Quarta Dimensão... Conjecturas, uma maçada! Ouve lá, tu hoje jantas
comigo e com uns amigos, Zé Fernandes?

--Não, Jacinto... Estou ainda enfardelado pelo alfaiate da serra!

E voltei ao gabinete mostrar ao meu camarada o jaquetão de flanela
grossa, a gravata de pintinhas escarlates, com que ao domingo, em
Guiães, visitava o Senhor. Mas Jacinto afirmou que esta simplicidade
montesina interessaria os seus convidados, que eram dois artistas...
Quem? O autor do "Coração Triplo", um Psicólogo Feminista, de agudeza
transcendente, Mestre muito experimentado e muito consultado em
Ciências Sentimentais; e Vorcan, um pintor mítico, que interpretara
etereamente, havia um ano, a simbolia rapsódica do cerco de Tróia,
numa vasta composição, "Helena Devastadora"...

Eu coçava a barba:

--Não, Jacinto, não... Eu venho de Guiães, das serras; preciso entrar
em toda esta civilização, lentamente, com cautela, senão rebento. Logo
na mesma tarde a electricidade, e o conferençofone, e os espaços
hipermágicos e o feminista, e o etéreo, e a simbolia devastadora, é
excessivo! Volto amanhã.

Jacinto dobrava vagarosamente a sua carta, onde metera sem rebuço
(como convinha à nossa fraternidade) duas violetas brancas tiradas do
ramo que lhe floria o peito.

--Amanhã, Zé Fernandes, tu vens antes de almoço, com as tuas malas dentro
de um fiacre, para te instalares no 202, no teu quarto. No Hotel são
embaraços, privações. Aqui tens o telefone, o teatrofone, livros...

Aceitei logo, com simplicidade. E Jacinto, embocando um tubo acústico,
murmurou:

--Grilo!

Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se fendeu,
surdiu o seu velho escudeiro (aquele moleque que viera com D.
Galeão), que eu me alegrei de encontrar tão rijo, mais negro,
reluzente e venerável na sua tesa gravata, no seu colete branco de
botões de ouro. Ele também estimou ver de novo "o siô Fernandes". E,
quando soube que eu ocuparia o quarto do avô Jacinto, teve um claro
sorriso de preto, em que envolveu o seu senhor, no contentamento de o
sentir enfim reprovido de uma família.

--Grilo, dizia Jacinto, esta carta a Madame de Oriol... Escuta!
Telefona para casa dos Trèves que os espiritistas só estão livres no
domingo... Escuta! Eu tomo uma duche antes de jantar, tépida, a 17.
Fricção com malva-rosa.

E caindo pesadamente para cima do divã, com um bocejo arrastado e
vago:

--Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como há sete anos,
neste velho Paris...

Mas eu não me arredava da mesa, no desejo de completar a minha
iniciação:

--Oh Jacinto, para que servem todos estes instrumentozinhos? Houve já
aí um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... São úteis?

Jacinto esboçou, com languidez, um gesto que os
sublimava. -Providenciais, meu filho, absolutamente providenciais, pela
simplificação que dão ao trabalho! Assim... E apontou. Este arrancava as
penas velhas; o outro numerava rapidamente as páginas de um manuscrito;
aqueloutro, além, raspava emendas... E ainda os havia para colar
estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...

--Mas com efeito, acrescentou, é uma seca. Com as molas, com os
bicos, às vezes magoam, ferem... Já me sucedeu inutilizar cartas por as
ter sujado com dedadas de sangue. É uma maçada!

Então, como o meu amigo espreitara novamente o relógio monumental, não
lhe quis retardar a consolação da ducha e da malva-rosa.

--Bem, Jacinto, já te revi, já me contentei... Agora até amanhã, com as
malas.

--Que diabo, Zé Fernandes, espera um momento... Vamos pela sala de
jantar. Talvez te tentes!

E, através da Biblioteca, penetramos na sala de jantar, que me
encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira branca, lacada,
mais lustrosa e macia que cetim, revestia as paredes, encaixilhando
medalhões de damasco cor de morango, de morango muito maduro e esmagado:
os aparadores, discretamente lavrados em florões e rocalhas,
resplandeciam com a mesma laca nevada: e damascos amorangados estofavam
também as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a lentidão de
gulas delicadas, de gulas intelectuais.

--Viva o meu Príncipe! Sim senhor... Eis aqui um comedouro muito
compreensível e muito repousante, Jacinto!

--Então janta, homem!

Mas já eu me começava a inquietar, reparando que a cada talher
correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me
impressionei quando Jacinto me desvendou que um era para as ostras,
outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro
para as frutas, outro para o queijo! Simultaneamente, com uma
sobriedade que louvaria Salomão, só dois copos, para dois vinhos:-um
Bordéus rosado em infusas de cristal, e Champanhe gelando dentro de
baldes de prata. Todo um aparador porém vergava, sob o luxo redundante,
quase assustador de águas, águas oxigenadas, águas carbonatadas, águas
fosfatadas, águas esterilizadas, águas de sais, outras ainda, em
garrafas bojudas, com tratados terapêuticos impressos em rótulos.

--Santíssimo nome de Deus, Jacinto! Então és ainda o mesmo tremendo
bebedor de água, hein?... "Un aquatico!" como dizia o nosso poeta
chileno, que andava a traduzir Klopstock.

Ele derramou, por sobre toda aquela garrafaria encarapuçada em metal,
um olhar desconsolado:

--Não... É por causa das águas da Cidade, contaminadas, atulhadas de
micróbios... Mas ainda não encontrei uma boa água que me convenha, que
me satisfaça... Até sofro sede.

Desejei então conhecer o jantar do Psicólogo e do Simbolista-traçado,
ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre lâminas de marfim.
Começava honradamente por ostras clássicas, de Marennes. Depois
aparecia uma sopa de alcachofras e ovas de carpa...

--É bom?

Jacinto encolheu desinteressadamente os ombros:

--Sim... Eu não tenho nunca apetite, já há tempos... Já há anos.

Do outro prato só compreendi que continha frangos e túbaras. Depois
saboreariam aqueles senhores um filete de veado, macerado em Xerez, com
geleia de noz. E por sobremesa simplesmente laranjas geladas em éter.

--Em éter, Jacinto?

O meu amigo hesitou, esboçou com os dedos a ondulação de um aroma que
se evola.

--É novo... Parece que o éter desenvolve, faz aflorar a alma das
frutas...

Curvei a cabeça ignara, murmurei nas minhas profundidades:

--Eis a Civilização!

E, descendo os Campos Elísios, encolhido no paletó a cogitar neste
prato simbólico, considerava a rudeza e atolado atraso da minha Guiães,
onde desde séculos a alma das laranjas permanece ignorada e
desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, por todos aqueles pomares
que ensombram e perfumam o vale, da Roqueirinha a Sandofim! Agora
porém, bendito Deus, na convivência de um tão grande iniciado como
Jacinto, eu compreenderia todas as finuras e todos os poderes da
Civilização.

E, (melhor ainda para a minha ternura!) contemplaria a raridade de um
homem que, concebendo uma ideia da Vida, a realiza--e através dela e
por ela recolhe a felicidade perfeita.

Bem se afirmara este Jacinto, na verdade, como Príncipe da
Grã-Ventura!


segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Letras & Linhas: Eça de Queirós

Letras & Linhas: Eça de Queirós: "A CIDADE E AS SERRAS Capítulo I O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos derenda em terras de semeadura, de vinhe..."

Eça de Queirós



A CIDADE E AS SERRAS


Capítulo I


O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de
renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.

No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes
ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras,
estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já
entulhava grão e plantava cepa em tempos de el-rei D. Dinis. A sua quinta
e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o
Tua e o Tinhela, por cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro.
E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até ao mar de Âncora.
Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em
Paris, nos Campos Elísios, nº 202.

Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em
Lisboa o D. Galeão, descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta,
rente de um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa
casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse
momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e
botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou
o enorme Jacinto até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara
para o lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos:

--Oh Jacinto Galeão, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas
pedras?

E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o Sr. Infante D. Miguel!

Desde essa tarde amou aquele bom Infante como nunca amara, apesar de
tão guloso, o seu ventre, e apesar de tão devoto o seu Deus! Na sala
nobre da sua casa (à Pampulha) pendurou sobre os damascos o retrato do
"seu Salvador", enfeitado de palmitos como um retábulo, e por baixo a
bengala que as magnânimas mãos reais tinham erguido do lixo. Enquanto o
adorável, desejado Infante penou no desterro de Viena, o barrigudo
senhor corria, sacudido na sua sege amarela, do botequim do Zé Maria em
Belém à botica do Plácido nos Algibebes, a gemer as saudades do
anjinho, a tramar o regresso do anjinho. No dia, entre todos
bendito, em que a Pérola apareceu à barra com o Messias, engrinaldou
a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papelão e lona onde D.
Miguel, tornado S. Miguel, branco, de auréola e asas de Arcanjo, furava
de cima do seu corcel de Alter o Dragão do Liberalismo, que se estorcia
vomitando a Carta. Durante a guerra com o outro, com o pedreiro livre
mandava recoveiros a Santo Tirso, a S. Gens, levar ao Rei fiambres,
caixas de doce, garrafas do seu vinho de Tarrafal, e bolsas de retrós
atochadas de peças que ele ensaboava para lhes avivar o ouro. E quando
soube que o Sr. D. Miguel, com dois velhos baús amarrados sobre um
macho, tomara o caminho de Sines e do final desterro Jacinto Galeão
correu pela casa, fechou todas as janelas como num luto, berrando
furiosamente:

-Também cá não fico! Também cá não fico!

Não, não queria ficar na terra perversa donde partia, esbulhado e
escorraçado, aquele Rei de Portugal que levantava na rua os Jacintos!
Embarcou para França com a mulher, a Sr.^a D. Angelina Fafes (da tão
falada casa dos Fafes da Avelã); com o filho, o 'Cintinho, menino
amarelinho, molezinho, coberto de caroços e leicenços; com a aia e com
o moleque. Nas costas da Cantábria o paquete encontrou tão rijos mares
que a Sr.^a D. Angelina, esguedelhada, de joelhos na enxerga do
beliche, prometeu ao Senhor dos Passos de Alcântara uma coroa
de espinhos, de ouro, com as gotas de sangue em rubis do Pegu. Em
Baiona, onde arribaram, "Cintinho" teve icterícia. Na estrada
de Orleães, numa noite agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam
partiu, e o nédio senhor, a delicada senhora da casa da Avelã, o
menino, marcharam três horas na chuva e na lama do exílio até uma
aldeia, onde, depois de baterem como mendigos a portas mudas, dormiram
nos bancos de uma taberna. No Hotel dos Santos Padres, em Paris,
sofreram os terrores de um fogo que rebentara na cavalariça, sob o
quarto de D. Galeão, e o digno fidalgo, rebolando pelas escadas em
camisa, até ao pátio, enterrou o pé nu numa lasca de vidro. Então ergueu
amargamente ao céu o punho cabeludo, e rugiu:

--Irra! É de mais!

Logo nessa semana, sem escolher, Jacinto Galeão comprou a um
Príncipe polaco, que depois da tomada de Varsóvia se metera frade
cartuxo, aquele palacete dos Campos Elísios, nº 202. E sob o pesado
ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sedas se enconchou,
descansando de tantas agitações, numa vida de pachorra e de boa mesa,
com alguns companheiros de emigração (o desembargador Nuno Velho, o conde
de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigestão, de uma
lampreia de escabeche que lhe mandara o seu procurador em Montemor. Os
amigos pensavam que a Srª D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a
boa senhora temia a jornada, os mares, as caleças que racham. E não se
queria separar do seu Confessor, nem do seu Médico, que tão bem lhe
compreendiam os escrúpulos e a asma.

--Eu, por mim, aqui fico no 202 (declarara ela), ainda que me faz falta
a boa água de Alcolena... O "Cintinho", esse, em crescendo, que decida.

O "Cintinho" crescera. Era um moço mais esguio e lívido que um círio, de
longos cabelos corredios, narigudo, silencioso, encafuado em roupas
pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, por causa da tosse
e de sufocações, errava em camisa com uma lamparina através do 202; e
os criados na copa sempre lhe chamavam a Sombra. Nessa sua mudez e
indecisão de sombra surdira, ao fim do luto do papá, o gosto muito vivo
de tornear madeiras ao torno: depois, mais tarde, com a melada flor dos
seus vinte anos, brotou nele outro sentimento, de desejo e de pasmo,
pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma rola,
educada num convento de Paris, e tão habilidosa que esmaltava, dourava,
concertava relógios e fabricava chapéus de feltro. No Outono de 1851,
quando já se desfolhavam os castanheiros dos Campos Elísios, o
"Cintinho" cuspilhou sangue. O médico, acarinhando o queixo e com uma
ruga séria na testa imensa, aconselhou que o menino abalasse para o
golfo Juan ou para as tépidas areias de Arcachon.
"'Cintinho" porém, no seu aferro de sombra, não se quis arredar da
Teresinha Velho, de quem se tornara, através de Paris, a muda, tardonha
sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu
um resto de sangue; e passou, como uma sombra.

Três meses e três dias depois do seu enterro o meu Jacinto nasceu.

       *       *       *       *       *

Desde o berço, onde a avó espalhava funcho e âmbar para afugentar a
Sorte-Ruim, Jacinto medrou com a segurança, a rijeza, a seiva rica
de um pinheiro das dunas.

Não teve sarampo e não teve lombrigas. As Letras, a Tabuada, o Latim
entraram por ele tão facilmente como o sol por uma vidraça. Entre os
camaradas, nos pátios dos colégios, erguendo a sua espada de lata e
lançando um brado de comando, foi logo o vencedor, o Rei que se adula,
e a quem se cede a fruta das merendas. Na idade em que se lê Balzac e
Musset nunca atravessou os tormentos da sensibilidade; nem crepúsculos
quentes o retiveram na solidão de uma janela, padecendo de um desejo sem
forma e sem nome. Todos os seus amigos (éramos três, contando o seu
velho escudeiro preto, o Grilo) lhe conservaram sempre amizades puras e
certas,sem que jamais a participação do seu luxo as avivasse ou fossem
desanimadas pelas evidências do seu egoísmo. Sem coração bastante forte
para conceber um amor forte, e contente com esta incapacidade que o
libertava, do amor só experimentou o mel, esse mel que o amor reserva
aos que o recolhem, à maneira das abelhas, com ligeireza, mobilidade e
cantando. Rijo, rico, indiferente ao Estado e ao Governo dos Homens,
nunca lhe conhecemos outra ambição além de compreender bem as Ideias
Gerais; e a sua inteligência, nos anos alegres de escolas e
controvérsias, circulava dentro das Filosofias mais densas como enguia
lustrosa na água limpa de um tanque. O seu valor, genuíno, de fino
quilate, nunca foi desconhecido, nem desapreciado; e toda a opinião, ou
mera facécia que lançasse, logo encontrava uma aragem de simpatia e
concordância que a erguia, a mantinha embalada e rebrilhando nas
alturas. Era servido pelas coisas com docilidade e carinho; e não
recordo que jamais lhe estalasse um botão da camisa, ou que um papel
maliciosamente se escondesse dos seus olhos, ou que ante a sua
vivacidade e pressa uma gaveta pérfida emperrasse. Quando um dia, rindo
com descrido riso da Fortuna e da sua Roda, comprou a um sacristão
espanhol um Décimo de Lotaria, logo a Fortuna, ligeira e ridente sobre
a sua Roda, correu num fulgor, para lhe trazer quatrocentas mil
pesetas. E no céu as Nuvens, pejadas e lentas, se avistavam Jacinto sem
guarda-chuva, retinham com reverência as suas águas até que ele
passasse... Ah! o âmbar e o funcho da Srª D. Angelina tinham
escorraçado do seu destino, bem triunfalmente e para sempre, a
Sorte-Ruim! A amorável avó (que eu conheci obesa, com barba) costumava
citar um soneto natalício do desembargador Nunes Velho contendo um verso
de boa lição:

     Sabei, senhora, que esta Vida é um rio...

Pois um rio de verão, manso, translúcido, harmoniosamente estendido
sobre uma areia macia e alva, por entre arvoredos fragrantes e ditosas
aldeias, não ofereceria àquele que o descesse num barco de cedro, bem
toldado e bem almofadado, com frutas e champanhe a refrescar em gelo,
um anjo governando ao leme, outros Anjos puxando à sirga, mais segurança
e doçura do que a vida oferecia ao meu amigo Jacinto.

Por isso nós lhe chamávamos "o Príncipe da Grã-Ventura"!

       *       *       *       *       *

Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos encontrámos e acamaradámos em
Paris, nas Escolas do Bairro Latino para onde me mandara meu bom tio
Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, quando aqueles malvados me
riscaram da Universidade por eu ter esborrachado, numa tarde de
procissão, na Sofia, a cara sórdida do Dr. Pais Pita.

Ora nesse tempo Jacinto concebera uma Ideia... Este Príncipe concebera
a Ideia de que "o homem só é superiormente feliz quando é superiormente
civilizado". E por homem civilizado o meu camarada entendia aquele que,
robustecendo a sua força pensante com todas as noções adquiridas desde
Aristóteles, e multiplicando a potência corporal dos seus órgãos com
todos os mecanismos inventados desde Terâmenes, criador da roda, se
torna um magnífico Adão, quase omnipotente, quase omnisciente, e apto
portanto a recolher dentro de uma sociedade e nos limites do Progresso
(tal como ele se comportava em 1875) todos os gozos e todos os
proveitos que resultam de Saber e de Poder... Pelo menos assim Jacinto
formulava copiosamente a sua Ideia, quando conversávamos de fins e
destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das cervejarias
filosóficas, no Boulevard Saint-Michel.

Este conceito de Jacinto impressionara os nossos camaradas de cenáculo,
que tendo surgido para a vida intelectual, de 1866 a 1875, entre a
batalha de Sadova e a batalha de Sedan, e ouvindo constantemente, desde
então, aos técnicos e aos filósofos, que fora a Espingarda-de-Agulha
que vencera em Sadova e fora o Mestre-de-Escola quem vencera em Sedan,
estavam largamente preparados a acreditar que a felicidade dos
indivíduos, como a das nações, se realiza pelo ilimitado
desenvolvimento da Mecânica e da Erudição. Um desses moços mesmo, o
nosso inventivo Jorge Carlande, reduzira a teoria de Jacinto, para lhe
facilitar a circulação e lhe condensar o brilho, a uma forma algébrica:

Suma ciência}
     X        }= Suma felicidade
Suma potência}

E durante dias, do Odeon à Sorbona, foi louvada pela mocidade positiva
a Equação Metafísica de Jacinto.

Para Jacinto, porém, o seu conceito não era meramente metafísico e
lançado pelo gozo elegante de exercer a razão especulativa: mas
constituía uma regra, toda de realidade e de utilidade, determinando a
conduta, modalizando a vida. E já a esse tempo, em concordância com o
seu preceito, ele se surtira da Pequena Enciclopédia dos Conhecimentos
Universais em setenta e cinco volumes e instalara, sobre os telhados
do 202, num mirante envidraçado, um telescópio. Justamente com esse
telescópio me tornou ele palpável a sua ideia, numa noite de Agosto,
de mole e dormente calor. Nos céus remotos lampejavam relâmpagos
lânguidos. Pela Avenida dos Campos Elísios, os fiacres rolavam para as
frescuras do Bosque, lentos, abertos, cansados, transbordando de
vestidos claros.

--Aqui tens tu, Zé Fernandes, (começou Jacinto, encostado à janela do
mirante) a teoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos que
recebemos da Madre natureza, lestos e sãos, nós podemos apenas
distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça
alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros
simples de um binóculo de corridas, percebo, por trás da vidraça,
presuntos, queijos, boiões de geleia e caixas de ameixa seca. Concluo
portanto que é uma mercearia. Obtive uma noção; tenho sobre ti, que com
os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça, uma vantagem positiva. Se
agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os do meu telescópio, de
composição mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os
mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia
de um astro que circula a milhares de léguas dos Campos Elísios. É outra
noção, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo, o da Natureza,
elevado pela Civilização à sua máxima potência de visão. E desde já,
pelo lado do olho portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o
incivilizado, porque descubro realidades do Universo que ele não
suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a todos os órgãos e
compreendes o meu princípio. Enquanto à inteligência, e à felicidade
que dela se tira pela incansável acumulação das noções, só te peço
que compares Renan e o Grilo... Claro é portanto que nos devemos cercar
de Civilização nas máximas proporções para gozar nas máximas proporções
a vantagem de viver. Agora concordas, Zé Fernandes?

Não me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz que o
Grilo; nem eu percebia que vantagem espiritual ou temporal se colha em
distinguir através do espaço manchas num astro, ou através da Avenida
dos Campos Elísios presuntos numa vidraça. Mas concordei, porque sou
bom, e nunca desalojarei um espírito do conceito onde ele encontra
segurança, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o colete, e
lançando um gesto para o lado dos cafés e das luzes:

--Vamos então beber, nas máximas proporções, brandy and soda, com
gelo!

Por uma conclusão bem natural, a ideia de Civilização, para Jacinto,
não se separava da imagem de Cidade, de uma enorme Cidade, com todos os
seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu
supercivilizado amigo compreendia que longe de Armazéns servidos por
três mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergéis e lezírias
de trinta províncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de
Fábricas fumegando com ânsia, inventando com ânsia; e de Bibliotecas
abarrotadas, a estalar, com a papelada dos séculos; e de fundas milhas
de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telégrafos, de fios
de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante
dos ónibus, tramways, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de
luxo; e de dois milhões de uma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar,
através da Polícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo, o
homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver!

Quando Jacinto, no seu quarto do 202, com as varandas abertas sobre os
lilases, me desenrolava estas imagens, todo ele crescia, iluminado.
Que criação augusta, a da Cidade! Só por ela, Zé Fernandes, só por
ela, pode o homem soberbamente afirmar a sua alma!...

--Oh Jacinto, e a religião? Pois a religião não prova a alma?

Ele encolhia os ombros. A religião! A religião é o desenvolvimento
sumptuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o
terror. Um cão lambendo a mão do dono, de quem lhe vem o osso ou o
chicote, já constitui toscamente um devoto, o consciente devoto,
prostrado em rezas ante o Deus que distribui o céu ou o inferno!... Mas
o telefone! o fonógrafo!

--Aí tens tu, o fonógrafo!... Só o fonógrafo, Zé Fernandes, me faz
verdadeiramente sentir a minha superioridade de ser pensante e me separa
do bicho. Acredita, não há senão a Cidade, Zé Fernandes, não há senão a
Cidade!

E depois (acrescentava) só a Cidade lhe dava a sensação, tão necessária
à vida como o calor, da solidariedade humana. E no 202, quando
considerava em redor, nas densas massas do casario de Paris, dois
milhões de seres arquejando na obra da Civilização (para manter na
natureza o domínio dos Jacintos!) sentia um sossego, um conchego, só
comparáveis ao do peregrino, que, ao atravessar o deserto, se ergue no
seu dromedário, e avista a longa fila da caravana marchando, cheia de
lumes e de armas...

Eu murmurava, impressionado:

--Caramba!

Ao contrário no campo, entre a inconsciência e a impassibilidade da
Natureza, ele tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solidão.
Estava aí como perdido num mundo que lhe não fosse fraternal; nenhum
silvado encolheria os espinhos para que ele passasse; se gemesse com
fome nenhuma árvore, por mais carregada, lhe estenderia o seu fruto na
ponta compassiva de um ramo. Depois, em meio da Natureza, ele assistia à
súbita e humilhante inutilização de todas as suas faculdades superiores.
De que servia, entre plantas e bichos, ser um Génio ou ser um Santo? As
searas não compreendem as Geórgicas; e fora necessário o socorro
ansioso de Deus, e a inversão de todas as leis naturais, e um violento
milagre para que o lobo de Agubio não devorasse S. Francisco de Assis,
que lhe sorria e lhe estendia os braços e lhe chamava "meu irmão lobo"!
Toda a intelectualidade, nos campos, se esteriliza, e só resta a
bestialidade. Nesses reinos crassos do Vegetal e do Animal duas únicas
funções se mantêm vivas, a nutritiva e a procriadora. Isolada, sem
ocupação, entre focinhos e raízes que não cessam de sugar e de pastar,
sufocando no cálido bafo da universal fecundação, a sua pobre alma toda
se engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fagulhazinha
espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria; e nessa
matéria dois instintos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e
o de gerar. Ao cabo de uma semana rural, de todo o seu ser tão
nobremente composto só restava um estômago e por baixo um falo! A
alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na Cidade,
mergulhar nas ondas lustrais da Civilização, para largar nelas a
crosta vegetativa, e ressurgir reumanizado, de novo espiritual e
Jacíntico!

E estas requintadas metáforas do meu amigo exprimiam sentimentos
reais, que eu testemunhei, que muito me divertiram, no único passeio que
fizemos ao campo, à bem amável e bem sociável floresta de Montmorency.
Oh delícias de entremez, Jacinto entre a Natureza! Logo que se afastava
dos pavimentos de madeira, do macadame, qualquer chão que os seus pés
calcassem o enchia de desconfiança e terror. Toda a relva, por mais
crestada, lhe parecia ressumar uma humidade mortal. De sob cada torrão,
da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de víboras, de
formas rastejantes e viscosas. No silêncio do bosque sentia um lúgubre
despovoamento do Universo. Não tolerava a familiaridade dos galhos que
lhe roçassem a manga ou a face. Saltar uma sebe era para ele um acto
degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as flores que não
tivesse já encontrado em jardins, domesticadas por longos séculos de
servidão ornamental, o inquietavam como venenosas. E considerava de uma
melancolia funambulesca certos modos e formas do Ser inanimado, a pressa
esperta e vã dos regatinhos, a careca dos rochedos, todas as contorções
do arvoredo e o seu resmungar solene e tonto.

Depois de uma hora, naquele honesto bosque de Montmorency, o meu pobre
amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento minguar e sumir
de alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desanuviou quando
penetramos no lajedo e no gás de Paris e a nossa vitória quase se
despedaçou contra um ónibus retumbante, atulhado de cidadãos. Mandou
descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade,
aquela materialização em que sentia a cabeça pesada e vaga como a de um
boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao teatro das Variedades para
sacudir, com os estribilhos da Femme à Papa, o rumor importuno que lhe
ficara dos melros cantando nos choupos altos.

Este delicioso Jacinto fizera então vinte e três anos, e era um
soberbo moço em quem reaparecera a força dos velhos Jacintos rurais.
Só pelo nariz, afilado, com narinas quase transparentes, de uma
mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia às
delicadezas do século XIX. O cabelo ainda se conservava, ao modo das
eras rudes, crespo e quase lanígero: e o bigode, como o de um Celta,
caía em fios sedosos, que ele necessitava aparar e frisar. Todo o seu
fato, as espessas gravatas de cetim escuro que uma pérola prendia, as
luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes
de cedro; e usava sempre ao peito uma flor, não natural, mas composta
destramente pela sua ramalheteira com pétalas de flores dissemelhantes,
cravo, azálea, orquídea ou tulipa, fundidas na mesma haste entre uma
leve folhagem de funcho.

       *       *       *       *       *

Em 1880, em Fevereiro, numa cinzenta e arrepiada manhã de chuva, recebi
uma carta de meu bom tio Afonso Fernandes, em que, depois de
lamentações sobre os seus setenta anos, os seus males hemorroidais, e a
pesada gerência dos seus bens (que pedia homem mais novo, com pernas
mais rijas) me ordenava que recolhesse à nossa casa de Guiães, no
Douro! Encostado ao mármore partido do fogão, onde na véspera a minha
Nini deixara um espartilho embrulhado no Jornal dos Debates, censurei
severamente meu tio que assim cortava em botão, antes de desabrochar, a
flor do meu Saber Jurídico. Depois num Post-Scriptum ele
acrescentava: -O tempo aqui está lindo, o que se pode chamar de rosas,
e tua santa tia muito se recomenda, que anda lá pela cozinha, porque
vai hoje em trinta e seis anos que casámos, temos cá o abade e o
Quintais a jantar, e ela quis fazer uma sopa dourada.

Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da
tia Vicência. Há quantos anos não a provava, nem o leitão assado, nem o
arroz de forno da nossa casa! Com o tempo assim tão lindo, já as mimosas
do nosso pátio vergariam sob os seus grandes cachos amarelos. Um pedaço
de céu azul, do azul de Guiães, que outro não há tão lustroso e macio,
entrou pelo quarto, alumiou, sobre a puída tristeza do tapete, relvas,
ribeirinhos, malmequeres e flores de trevo de que meus olhos andavam
aguados. E, por entre as bambinelas de sarja, passou um ar fino e forte
e cheiroso de serra e de pinheiral.

Assobiando um fado meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e
meti solicitamente entre calças e peúgas um Tratado de Direito Civil,
para aprender enfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as
leis que regem os homens. Depois, nessa tarde, anunciei a Jacinto que
partia para Guiães. O meu camarada recuou com um surdo gemido de espanto
e piedade:

--Para Guiães!... Oh Zé Fernandes, que horror!

E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me
deveria prover para que pudesse conservar, nos ermos silvestres, tão
longe da Cidade, uma pouca de alma dentro de um pouco de corpo. Leva uma
poltrona! Leva a Enciclopédia Geral! Leva caixas de aspáragos!...

Mas para o meu Jacinto, desde que assim me arrancavam da Cidade, eu era
arbusto desarreigado que não reviverá. A mágoa com que me acompanhou ao
comboio conviria excelentemente ao meu funeral. E quando fechou sobre
mim a portinhola, gravemente, supremamente, como se cerra uma grade de
sepultura, eu quase solucei com saudades minhas.

Cheguei a Guiães. Ainda restavam flores nas mimosas do nosso pátio; comi
com delícias a sopa dourada da tia Vicência; de tamancos nos pés assisti
à ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras, crestando ao sol das
eiras, caçando a perdiz nos matos geados, rachando a melancia fresca na
poeira dos arraiais, arranchando a magustos, serandando à candeia,
atiçando fogueiras de S. João, enfeitando presépios de Natal, por ali
me passaram docemente sete anos, tão atarefados que nunca logrei abrir
o Tratado de Direito Civil, e tão singelos que apenas me recordo quando,
em vésperas de S. Nicolau, o abade caiu da égua à porta do Brás das
Cortes. De Jacinto só recebia raramente algumas linhas, escrevinhadas à
pressa por entre o tumulto da Civilização. Depois, num Setembro muito
quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Afonso Fernandes morreu, tão
quietamente, Deus seja louvado por esta graça, como se cala um
passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado dia. Acabei pela aldeia
a roupa do luto. A minha afilhada Joaninha casou na matança do porco.
Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.