A Cidade e as Serras
Capítulo II
Era de novo Fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu
desci os Campos Elísios em demanda do 202. Adiante de mim caminhava,
levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até às abas
recurvas do chapéu donde fugiam anéis de um cabelo crespo, ressumava
elegância e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos, cruzadas atrás
das costas, calçadas de anta branca, sustentava uma bengala grossa com
castão de cristal. E só quando ele parou ao portão do 202 reconheci o
nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.
--Oh Jacinto!
--Oh Zé Fernandes!
O abraço que nos enlaçou foi tão alvoroçado que o meu chapéu rolou na
lama. E ambos murmurávamos, comovidos, entrando a grade:
--Há sete anos!...
--Há sete anos!...
E, todavia, nada mudara durante esses sete anos no jardim do 202! Ainda
entre as duas áleas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e
varrida que a lã de um tapete. No meio o vaso coríntico esperava Abril
para resplandecer com tulipas e depois Junho para transbordar de
margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma vidraçaria toldava,
as duas magras Deusas de pedra, do tempo de D. Galeão, sustentavam as
antigas lâmpadas de globos foscos, onde já silvava o gás.
Mas dentro, no peristilo, logo me surpreendeu um elevador instalado
por Jacinto, apesar do 202 ter somente dois andares, e ligados por uma
escadaria tão doce que nunca ofendera a asma da Srª D. Angelina!
Espaçoso, tapetado, ele oferecia, para aquela jornada de sete
segundos, confortos numerosos, um divã, uma pele de urso, um roteiro
das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na
antecâmara, onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia e tépida
de uma tarde de Maio, em Guiães. Um criado, mais atento ao termómetro
que um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do
calorífero. E perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de
Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente humedecendo
aquele ar delicado e superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado ser:
--Eis a Civilização!
Jacinto empurrou uma porta, penetrámos numa nave cheia de majestade e
sombra, onde reconheci a Biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa
de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma coroa
de lumes eléctricos, refulgindo entre os lavores do tecto, alumiou as
estantes monumentais, todas de ébano. Nelas repousavam mais de trinta
mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com
retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores
num concílio.
Não contive a minha admiração:
--Oh Jacinto! Que depósito!
Ele murmurou, num sorriso descorado:
--Há que ler, há que ler...
Reparei então que o meu amigo emagrecera: e que o nariz se lhe afilara
mais entre duas rugas muito fundas, como as de um comediante cansado. Os
anéis do seu cabelo lanígero rareavam sobre a testa, que perdera a
antiga serenidade de mármore bem polido. Não frisava agora o bigode
murcho, caído em fios pensativos. Também notei que corcovava.
Ele erguera uma tapeçaria, entrámos no seu gabinete de trabalho, que me
inquietou. Sobre a espessura dos tapetes sombrios os nossos passos
perderam logo o som, e como a realidade. O damasco das paredes, os
divãs, as madeiras, eram verdes, de um verde profundo de folha de louro.
Sedas verdes envolviam as luzes eléctricas, dispersas em lâmpadas tão
baixas que lembravam estrelas caídas por cima das mesas, acabando de
arrefecer e morrer: só uma rebrilhava, nua e clara, no alto de uma
estante quadrada, esguia, solitária como uma torre numa planície, e de
que o lume parecia ser o farol melancólico. Um biombo de laca verde,
fresco verde de relva, resguardava a chaminé de mármore verde, verde de
mar sombrio, onde esmoreciam as brasas de uma lenha aromática. E entre
aqueles verdes reluzia, por sobre peanhas e pedestais, toda uma
Mecânica sumptuosa, aparelhos, lâminas, rodas, tubos, engrenagens,
hastes, friezas, rigidezes de metais...
Mas Jacinto batia nas almofadas do divã, onde se enterrara com um modo
cansado que eu não lhe conhecia:
--Para aqui, Zé Fernandes, para aqui! É necessário reatarmos estas
nossas vidas, tão apartadas há sete anos!... Em Guiães, sete anos! Que
fizeste tu?
--E tu, que tens feito, Jacinto?
O meu amigo encolheu molemente os ombros. Vivera, cumprira com
serenidade todas as funções, as que pertencem à matéria e as que
pertencem ao espírito...
--E acumulaste Civilização, Jacinto! Santo Deus... Está tremendo, o
202!
Ele espalhou em torno um olhar onde já não faiscava a antiga
vivacidade:
--Sim, há confortos... Mas falta muito! A humanidade ainda está mal
apetrechada, Zé Fernandes... E a vida conserva resistências.
Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telefone. E enquanto o
meu amigo, curvado sobre a placa, murmurava impaciente: -Está lá? -Está
lá?, examinei curiosamente, sobre a sua imensa mesa de trabalho, uma
estranha e miúda legião de instrumentozinhos de níquel, de aço, de cobre,
de ferro, com gumes, com argolas, com tenazes, com ganchos, com dentes,
expressivos todos, de utilidades misteriosas. Tomei um que tentei
manejar, e logo uma ponta malévola me picou um dedo. Nesse instante
rompeu doutro canto um "tic-tic-tic" açodado, quase ansioso. Jacinto
acudiu, com a face no telefone:
--Vê aí o telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve
estar a correr.
E, com efeito, de uma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um
aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete, como uma ténia, a
longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras,
apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo
Jacinto que a fragata russa, Azoff, entrara em Marselha com avaria!
Já ele abandonara o telefone. Desejei saber, inquieto, se o
prejudicava directamente aquela avaria da Azoff.
--Da Azoff?... A avaria? A mim?... Não! É uma notícia.
Depois, consultando um relógio monumental que, ao fundo da Biblioteca,
marcava a hora de todas as Capitais e o curso de todos os Planetas:
--Eu preciso escrever uma carta, seis linhas... Tu esperas, não, Zé
Fernandes? Tens aí os jornais de Paris, da noite; e os de Londres,
desta manhã. As Ilustrações além, naquela pasta de couro com
ferragens.
Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava à minha profanidade
serrana todos os gostos de uma iniciação. Aos lados da cadeira de
Jacinto pendiam gordos tubos acústicos, por onde ele decerto soprava
as suas ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões túmidos e moles,
coleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra à maneira
de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e reflectida no seu verniz
como na água de um poço, pousava uma Máquina de escrever: e adiante era
uma imensa Máquina de calcular, com fileiras de buracos donde
espreitavam, esperando, números rígidos e de ferro. Depois parei em
frente da estante que me preocupava, assim solitária, à maneira de uma
torre numa planície, com o seu alto farol. Toda uma das suas faces
estava repleta de Dicionários; a outra de Manuais; a outra de Atlas; a
última de Guias, e entre eles, abrindo um fólio, encontrei o Guia das
ruas de Samarcanda. Que maciça torre de informação! Sobre prateleiras
admirei aparelhos que não compreendia:- um composto de lâminas de
gelatina, onde desmaiavam, meio-chupadas, as linhas de uma carta, talvez
amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o
decepar, um cutelo funesto; outro avançando a boca de uma tuba, toda
aberta para as vozes do invisível. Cingidos aos umbrais, liados às
cimalhas, luziam arames, que fugiam através do tecto, para o espaço.
Todos mergulhavam em forças universais, todos transmitiam forças
universais. A Natureza convergia disciplinada ao serviço do meu amigo e
entrara na sua domesticidade!...
Jacinto atirou uma exclamação impaciente:
--Oh, estas penas eléctricas!... Que seca!
Amarrotara com cólera a carta começada, eu escapei, respirando, para a
Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da
Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto
essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa
lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos Economistas.
Avancei, e percorri, espantado, oito metros de Economia Política. Depois
avistei os Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma
parede, desde as escolas Pré-Socráticas até às escolas Neopessimistas.
Naquelas pranchas se acastelavam mais de dois mil sistemas, e que
todos se contradiziam. Pelas encadernações logo se deduziam as
doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro negro; Platão, em
cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para diante começavam as
Histórias Universais. Mas aí uma imensa pilha de livros brochados,
cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante,
como fresca terra de aluvião tapando uma riba secular. Contornei essa
colina, mergulhei na secção das Ciências Naturais, peregrinando, num
assombro crescente, da Orografia para a Paleontologia, e da Morfologia
para a Cristalografia. Essa estante rematava junto de uma janela
rasgada sobre os Campos Elísios. Apartei as cortinas de veludo, e por
trás descobri outra portentosa rima de volumes, todos de História
Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente até aos
últimos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas, o ar e a luz do
Senhor.
Mas depois rebrilhava, em marroquins claros, a estante amável dos
Poetas. Como um repouso para o espírito esfalfado de todo aquele saber
positivo, Jacinto aconchegara aí um recanto, com um divã e uma mesa
de limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de charutos, de
cigarros do Oriente, de tabaqueiras do século XVIII. Sobre um cofre de
madeira lisa pousava ainda, esquecido, um prato de damascos secos do
Japão. Cedi à sedução das almofadas; trinquei um damasco, abri um
volume; e senti estranhamente, ao lado, um zumbido, como de um insecto
de asas harmoniosas. Sorri à ideia que fossem abelhas, compondo o seu mel
naquele maciço de versos em flor. Depois percebi que o sussurro remoto
e dormente vinha do cofre de mogno, de parecer tão discreto. Arredei uma
"Gazeta de França"; e descortinei um cordão que emergia de um orifício,
escavado no cofre, e rematava num funil de marfim. Com curiosidade,
encostei o funil a esta minha confiada orelha, afeita à singeleza dos
rumores da serra. E logo uma Voz, muito mansa, mas muito decidida,
aproveitando a minha curiosidade para me invadir e se apoderar do meu
entendimento, sussurrou capciosamente:
--...E assim, pela disposição dos cubos diabólicos, eu chego a
verificar os espaços hipermágicos!...
Pulei, com um berro.
--Oh Jacinto, aqui há um homem! Está aqui um homem a falar dentro
de uma caixa!
O meu camarada, habituado aos prodígios, não se alvoroçou:
--É o Conferençofone... Exactamente como o Teatrofone; somente
aplicado às escolas e às conferências. Muito cómodo!... Que diz o
homem, Zé Fernandes?
Eu considerava o cofre, ainda esgazeado:
--Eu sei! Cubos diabólicos, espaços mágicos, toda a sorte de horrores...
Senti dentro o sorriso superior de Jacinto:
--Ah, é o coronel Dorchas... Lições de Metafísica Positiva sobre a
Quarta Dimensão... Conjecturas, uma maçada! Ouve lá, tu hoje jantas
comigo e com uns amigos, Zé Fernandes?
--Não, Jacinto... Estou ainda enfardelado pelo alfaiate da serra!
E voltei ao gabinete mostrar ao meu camarada o jaquetão de flanela
grossa, a gravata de pintinhas escarlates, com que ao domingo, em
Guiães, visitava o Senhor. Mas Jacinto afirmou que esta simplicidade
montesina interessaria os seus convidados, que eram dois artistas...
Quem? O autor do "Coração Triplo", um Psicólogo Feminista, de agudeza
transcendente, Mestre muito experimentado e muito consultado em
Ciências Sentimentais; e Vorcan, um pintor mítico, que interpretara
etereamente, havia um ano, a simbolia rapsódica do cerco de Tróia,
numa vasta composição, "Helena Devastadora"...
Eu coçava a barba:
--Não, Jacinto, não... Eu venho de Guiães, das serras; preciso entrar
em toda esta civilização, lentamente, com cautela, senão rebento. Logo
na mesma tarde a electricidade, e o conferençofone, e os espaços
hipermágicos e o feminista, e o etéreo, e a simbolia devastadora, é
excessivo! Volto amanhã.
Jacinto dobrava vagarosamente a sua carta, onde metera sem rebuço
(como convinha à nossa fraternidade) duas violetas brancas tiradas do
ramo que lhe floria o peito.
--Amanhã, Zé Fernandes, tu vens antes de almoço, com as tuas malas dentro
de um fiacre, para te instalares no 202, no teu quarto. No Hotel são
embaraços, privações. Aqui tens o telefone, o teatrofone, livros...
Aceitei logo, com simplicidade. E Jacinto, embocando um tubo acústico,
murmurou:
--Grilo!
Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se fendeu,
surdiu o seu velho escudeiro (aquele moleque que viera com D.
Galeão), que eu me alegrei de encontrar tão rijo, mais negro,
reluzente e venerável na sua tesa gravata, no seu colete branco de
botões de ouro. Ele também estimou ver de novo "o siô Fernandes". E,
quando soube que eu ocuparia o quarto do avô Jacinto, teve um claro
sorriso de preto, em que envolveu o seu senhor, no contentamento de o
sentir enfim reprovido de uma família.
--Grilo, dizia Jacinto, esta carta a Madame de Oriol... Escuta!
Telefona para casa dos Trèves que os espiritistas só estão livres no
domingo... Escuta! Eu tomo uma duche antes de jantar, tépida, a 17.
Fricção com malva-rosa.
E caindo pesadamente para cima do divã, com um bocejo arrastado e
vago:
--Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como há sete anos,
neste velho Paris...
Mas eu não me arredava da mesa, no desejo de completar a minha
iniciação:
--Oh Jacinto, para que servem todos estes instrumentozinhos? Houve já
aí um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... São úteis?
Jacinto esboçou, com languidez, um gesto que os
sublimava. -Providenciais, meu filho, absolutamente providenciais, pela
simplificação que dão ao trabalho! Assim... E apontou. Este arrancava as
penas velhas; o outro numerava rapidamente as páginas de um manuscrito;
aqueloutro, além, raspava emendas... E ainda os havia para colar
estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...
--Mas com efeito, acrescentou, é uma seca. Com as molas, com os
bicos, às vezes magoam, ferem... Já me sucedeu inutilizar cartas por as
ter sujado com dedadas de sangue. É uma maçada!
Então, como o meu amigo espreitara novamente o relógio monumental, não
lhe quis retardar a consolação da ducha e da malva-rosa.
--Bem, Jacinto, já te revi, já me contentei... Agora até amanhã, com as
malas.
--Que diabo, Zé Fernandes, espera um momento... Vamos pela sala de
jantar. Talvez te tentes!
E, através da Biblioteca, penetramos na sala de jantar, que me
encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira branca, lacada,
mais lustrosa e macia que cetim, revestia as paredes, encaixilhando
medalhões de damasco cor de morango, de morango muito maduro e esmagado:
os aparadores, discretamente lavrados em florões e rocalhas,
resplandeciam com a mesma laca nevada: e damascos amorangados estofavam
também as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a lentidão de
gulas delicadas, de gulas intelectuais.
--Viva o meu Príncipe! Sim senhor... Eis aqui um comedouro muito
compreensível e muito repousante, Jacinto!
--Então janta, homem!
Mas já eu me começava a inquietar, reparando que a cada talher
correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me
impressionei quando Jacinto me desvendou que um era para as ostras,
outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro
para as frutas, outro para o queijo! Simultaneamente, com uma
sobriedade que louvaria Salomão, só dois copos, para dois vinhos:-um
Bordéus rosado em infusas de cristal, e Champanhe gelando dentro de
baldes de prata. Todo um aparador porém vergava, sob o luxo redundante,
quase assustador de águas, águas oxigenadas, águas carbonatadas, águas
fosfatadas, águas esterilizadas, águas de sais, outras ainda, em
garrafas bojudas, com tratados terapêuticos impressos em rótulos.
--Santíssimo nome de Deus, Jacinto! Então és ainda o mesmo tremendo
bebedor de água, hein?... "Un aquatico!" como dizia o nosso poeta
chileno, que andava a traduzir Klopstock.
Ele derramou, por sobre toda aquela garrafaria encarapuçada em metal,
um olhar desconsolado:
--Não... É por causa das águas da Cidade, contaminadas, atulhadas de
micróbios... Mas ainda não encontrei uma boa água que me convenha, que
me satisfaça... Até sofro sede.
Desejei então conhecer o jantar do Psicólogo e do Simbolista-traçado,
ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre lâminas de marfim.
Começava honradamente por ostras clássicas, de Marennes. Depois
aparecia uma sopa de alcachofras e ovas de carpa...
--É bom?
Jacinto encolheu desinteressadamente os ombros:
--Sim... Eu não tenho nunca apetite, já há tempos... Já há anos.
Do outro prato só compreendi que continha frangos e túbaras. Depois
saboreariam aqueles senhores um filete de veado, macerado em Xerez, com
geleia de noz. E por sobremesa simplesmente laranjas geladas em éter.
--Em éter, Jacinto?
O meu amigo hesitou, esboçou com os dedos a ondulação de um aroma que
se evola.
--É novo... Parece que o éter desenvolve, faz aflorar a alma das
frutas...
Curvei a cabeça ignara, murmurei nas minhas profundidades:
--Eis a Civilização!
E, descendo os Campos Elísios, encolhido no paletó a cogitar neste
prato simbólico, considerava a rudeza e atolado atraso da minha Guiães,
onde desde séculos a alma das laranjas permanece ignorada e
desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, por todos aqueles pomares
que ensombram e perfumam o vale, da Roqueirinha a Sandofim! Agora
porém, bendito Deus, na convivência de um tão grande iniciado como
Jacinto, eu compreenderia todas as finuras e todos os poderes da
Civilização.
E, (melhor ainda para a minha ternura!) contemplaria a raridade de um
homem que, concebendo uma ideia da Vida, a realiza--e através dela e
por ela recolhe a felicidade perfeita.
Bem se afirmara este Jacinto, na verdade, como Príncipe da
Grã-Ventura!