segunda-feira, 30 de maio de 2011

Manuel Bandeira


Canção do vento e da minha vida
O vento varria as folhas,
o vento varria os frutos,
o vento varria as flores...
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de frutos, de flores, de folhas.
O vento varria as luzes,
o vento varria as músicas,
o vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de aromas, de estrelas, de cânticos.
O vento varria os sonhos
e varria as amizades...
o vento varria as mulheres.
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de afetos e de mulheres.
O vento varria os meses
e varria os teus sorrisos...
o vento varria tudo!
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de tudo.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Antero de Quental


À Virgem Santíssima
Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia
N'um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...
Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...
Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

terça-feira, 24 de maio de 2011

Vinícius de Moraes

Samba da Bênção

Cantado
É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não
Falado
Senão é como amar uma mulher só linda
E daí? Uma mulher tem que ter
Qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão
Cantado
Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não
Falado
Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Ponha um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba
Cantado
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
Falado
Eu, por exemplo, o capitão do mato
Vinicius de Moraes
Poeta e diplomata
O branco mais preto do Brasil
Na linha direta de Xangô, saravá!
A bênção, Senhora
A maior ialorixá da Bahia
Terra de Caymmi e João Gilberto
A bênção, Pixinguinha
Tu que choraste na flauta
Todas as minhas mágoas de amor
A bênção, Sinhô, a benção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nelson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro
Você, sobrinho de Nonô
A bênção, Noel, sua bênção, Ary
A bênção, todos os grandes
Sambistas do Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxum
A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim
Parceiro e amigo querido
Que já viajaste tantas canções comigo
E ainda há tantas por viajar
A bênção, Carlinhos Lyra
Parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento
E ao pensamento
A bênção, a bênção, Baden Powell
Amigo novo, parceiro novo
Que fizeste este samba comigo
A bênção, amigo
A bênção, maestro Moacir Santos
Não és um só, és tantos como
O meu Brasil de todos os santos
Inclusive meu São Sebastião
Saravá! A bênção, que eu vou partir
Eu vou ter que dizer adeus
Cantado
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Luís Fernando Veríssimo


O Analista de Bagé
Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vêm de Bagé, assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas. Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem-educada), mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.
Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.
- Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.
- O senhor quer que eu deite logo no divã?
- Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da fronteira, pra não perder tempo nem dinheiro.
- Certo, certo. Eu...
- Aceita um mate?
- Um quê? Ah, não. Obrigado.
- Pos desembucha.
- Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?
- Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.
- Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe.
- Outro...
- Outro?
- Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.
- E o senhor acha...
- Eu acho uma pôca vergonha...
- Mas...
- Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê!
*
Contam que uma vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé. Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.
- Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira...
Mas acabou concordando.
- Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê. Qual é o causo?
- Bem - disse o homem - é que nós tivemos um desentendimento...
- Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?
- Eu não meti a espora. Não é, meu bem?
- Não fala comigo!
- Mas essa aí tá mais nervosa que gato em dia de faxina.
- Ela tem um problema de carência afetiva...
- Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem.
- Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento porque ela tem procurado experiências extraconjugais...
- Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer um bota a mão?
- Nós somos pessoas modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?
- Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros?
- O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.
- Mas isto ta ficando mais enrolado que lingüiça de venda. Te deita no pelego.
- Eu?
- Ela. Tu espera na salinha.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Castro Alves


 O Navio Negreiro


III
       
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!   
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano   
Como o teu mergulhar no brigue voador!   
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!   
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...   
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!   
   
IV
        
Era um sonho dantesco... o tombadilho    
Que das luzernas avermelha o brilho.   
Em sangue a se banhar.   
Tinir de ferros... estalar de açoite...    
Legiões de homens negros como a noite,   
Horrendos a dançar...   
Negras mulheres, suspendendo às tetas    
Magras crianças, cujas bocas pretas    
Rega o sangue das mães:    
Outras moças, mas nuas e espantadas,    
No turbilhão de espectros arrastadas,   
Em ânsia e mágoa vãs!   
E ri-se a orquestra irônica, estridente...   
E da ronda fantástica a serpente    
Faz doudas espirais ...   
Se o velho arqueja, se no chão resvala,    
Ouvem-se gritos... o chicote estala.   
E voam mais e mais...   
Presa nos elos de uma só cadeia,    
A multidão faminta cambaleia,   
E chora e dança ali!   
Um de raiva delira, outro enlouquece,    
Outro, que martírios embrutece,   
Cantando, geme e ri!   No entanto o capitão manda a manobra,   
E após fitando o céu que se desdobra,   
Tão puro sobre o mar,   
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:   
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!   
Fazei-os mais dançar!..."   
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .   
E da ronda fantástica a serpente   
          Faz doudas espirais...   
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...   
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!   
          E ri-se Satanás!...    

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Vinícius de Moraes



A esposa

Às vezes, nessas noites frias e enevoadas 
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos 
Essa estranha visão de mulher calma 
Surgindo do vazio dos meus olhos parados 
Vem espiar minha imobilidade. 

E ela fica horas longas, horas silenciosas 
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto 
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele. 
Nada diz, nada pensa, apenas olha - e o seu olhar é como a luz 
De uma estrela velada pela bruma. 
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que descem 
Mas que não vencem o olhar perdido longe. 
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias 
Se sentir frias suas mãos. 

Quando a porta ranger e a cabecinha de criança 
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo 
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios 
Sorrindo de um sorriso misterioso 
E se irá num passo leve 
Após o beijo leve e roçagante... 

Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente... 
Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.