segunda-feira, 2 de maio de 2011

William Shakespeare



Cena III

O mesmo. Um cemitério, com o túmulo dos Capuletos. Entram Páris e seu pajem, trazendo flores e uma tocha.
     PÁRIS — Dá-me a tocha, rapaz, e fica à parte. Não, apaga-a; não quero que me vejam. Deita-te ali embaixo do cipreste e o ouvido encosta junto do oco solo. Assim, não pisará o cemitério nenhum pé, sendo o solo pouco firme, frouxo e escavado pelas sepulturas, sem que o percebas. Deves assobiar-me, em sinal de que vem chegando gente. Dá-me essas flores. Faze o que te disse.
     PAJEM (à parte) — Sinto um pouco de medo, por sozinho me ver no cemitério. Mas que seja.(Sai.)
     PÁRIS — Minha querida flor, espalho flores em teu leito – Oh! de pedras é o dossel! – De água à noite trarei irrigadores ou o pranto amargo de meu fado cruel. Os funerais de nossa desventura flores far-te-ão nascer na sepultura. (O pajem assobia.) O menino me avisa que vem gente. Que pé maldito pisa estes caminhos durante a noite, para perturbar-me nos funerais e ritos do amor puro? Como! Traz uma tocha? Noite, esconde-me durante alguns instantes. (Retira-se.)
(Entram Romeu e Baltasar, com uma tocha, enxadão, etc.)
     ROMEU — Dá-me o ferro e o enxadão. Toma esta carta. Logo que amanhecer tens de entregá-la ao meu senhor e pai. Agora, a tocha. Por tua vida te exorto: embora vejas e ouças seja o que for, fica a de parte, sem vires perturbar-me. Se ora desço a este leito de morte, em parte é apenas para o rosto ainda ver de minha esposa, mas, sobretudo, para de seu dedo de morta o anel tirar muito precioso que necessito para um caso extremo. Por isso, parte logo. Mas se, acaso só por curiosidade retornares para espiar o que fazer pretendo: pelo céu! quebrar-te-ei todas as juntas e encherei o faminto cemitério com partes de teu corpo. Meus intuitos a esta hora são selvagens, mais violentos e inexoráveis ainda do que o tigre faminto e o mar revolto.
     BALTASAR — Vou-me embora, senhor, sem vos atrapalhar em nada.
     ROMEU — Assim, me provarás tua amizade. Toma isto para ti; vive e prospera. E agora, bom amigo, passa bem.
     BALTASAR (à parte) — Mas apesar de tudo, vou esconder-me por aqui mesmo. Não confio nele e temo seu olhar. (Retira-se.)
     ROMEU — Matriz da morte. detestável maxila, que estás cheia da mais cara partícula da terra: assim te forço os maxilares podres (Abre a sepultura.) e te obrigo a aceitar mais alimento.
     PÁRIS — Este é o Montecchio altivo, que banido foi por ter morto o primo de Julieta, por cuja dor a morrer veio aquela criatura incomparável. Ei-lo agora que vem para fazer nesses cadáveres alguma vilania oprobriosa. Vou prendê-lo. (Adianta-se.) Interrompe teu maldito trabalho, vil Montecchio! Como! É crível que a vingança vá além da própria morte? Estás preso, banido desprezível. Obedece e me segue; morrer deves.
     ROMEU — Devo morrer, é fato; foi para isso que vim aqui. Mancebo generoso, tentar não queiras um desesperado. Foge daqui e deixa-me; reflete nestes mortos e que eles te amedrontem. Suplico-te, mancebo, não me faças arcar com o peso de mais um pecado, pois aqui vim contra mim próprio armado. Não fiques; vai-te e dize no porvir que foi um louco que te fez fugir.
     PÁRIS — Importância não dou a teu pedido e prendo-te por seres criminoso.
     ROMEU — Queres me provocar? Então defende-te.
(Batem-se.)
     PAJEM — Batem-se, oh Deus! Vou já chamar a guarda. (Sai.)
     PÁRIS (cai) — Estou morto! Se fores compassivo, abre a tumba e me deita com Julieta. (Morre.)
     ROMEU — Em verdade o farei. Porém vejamos estas feições: o nobre conde Páris, parente de Mercúcio! Que me disse meu criado, quando juntos caminhávamos para cá e minha alma atormentada não escutava nada? Não me disse que Páris e Julieta iam casar-se? Não foi assim, ou terá sido sonho? Ou então, por estar louco, pensei nisso, quando ele me falava de Julieta? Dá-me essa mão, ó tu que estás inscrito, como eu também, no livro do infortúnio. Vou depor-te num túmulo glorioso. Túmulo? Não, mancebo assassinado; uma lanterna, pois Julieta se acha deitada aí e sua formosura faz desta abóbada uma sala régia, transbordante de luz. Repousa, morto, por um morto enterrado. (Coloca no túmulo o corpo de Páris.) Quantas vezes, no ponto de morrer, ledos se mostram os homens? É o clarão da despedida, dizem quantos o doente estão velando. Oh! poderei chamar clarão a esta hora? Ó meu amor! querida esposa! A morte que sugou todo o mel de teu doce hálito poder não teve em tua formosura. Não; conquistada ainda não foste; a insígnia da beleza em teus lábios e nas faces ainda está carmesim, não tendo feito progresso o pálido pendão da morte. Tebaldo, jazes num lençol de sangue? Oh! que maior favor fazer-te posso do que com esta mesma mão que a tua mocidade cortou, destruir, agora, também, a do que foi teu inimigo? Primo, perdoa-me. Ah! querida esposa, por que ainda és tão formosa? Pensar devo que a morte insubstancial se apaixonasse de ti e que esse monstro magro e horrível para amante nas trevas te conserve? Com medo disso, ficarei contigo, sem nunca mais deixar os aposentos da tenebrosa noite; aqui desejo permanecer, com os vermes, teus serventes. Aqui, sim, aqui mesmo fixar quero meu eterno repouso, e desta carne lassa do mundo sacudir o jugo das estrelas funestas. Olhos, vede mais uma vez; é a última. Um abraço permiti-vos também, ó braços! Lábios, que sois a porta do hálito, com um beijo legítimo selai este contrato sempiterno com a morte exorbitante. Vem, condutor amargo! Vem, meu guia de gosto repugnante! Ó tu, piloto desesperado! lança de um só golpe contra a rocha escarpada teu barquinho tão cansado da viagem trabalhosa. Eis para meu amor. (Bebe.) Ó boticário veraz e honesto! tua droga é rápida. Deste modo, com um beijo, deixo a vida. (Morre.)
(Entra pelo outro lado do cemitério frei Lourenço com lanterna, alavanca e uma pá.)
     FREI LOURENÇO — São Francisco me ajude! Quantas vezes esta noite meus pés enfraquecidos tropeçaram em túmulos? Quem vive?
     BALTASAR — É um amigo, que muito vos conhece.
     FREI LOURENÇO — Deus te abençoe. Querido amigo, dize-me que tocha é aquela ali que embalde a sua luz aos vermes empresta e aos crânios cegos? Ao que parece, está no monumento dos Capuletos.
     BALTASAR — Sim, é lá, santo homem. Lá se acha meu senhor, de quem gostais.
     FREI LOURENÇO — Quem é ele?
     BALTASAR — Romeu.
     FREI LOURENÇO — Há quanto tempo está ele lá?
     BALTASAR — Há cerca de meia hora.
     FREI LOURENÇO — Vem comigo até o túmulo.
     BALTASAR — Não ouso fazer isso, senhor; meu amo pensa que eu fui embora e me ameaçou de morte se eu ficasse a espreitá-lo.
     FREI LOURENÇO — Então espera; irei só; já começo a sentir medo. Oh! receio algum caso desastrado.
     BALTASAR — Tendo dormido sob aquele teixo, vi em sonhos, parece, que meu amo se batia com outro, tendo-o morto.
     FREI LOURENÇO (adiantando-se) — Romeu! Romeu! Oh dor! Que sangue é este que mancha a entrada pétrea do sepulcro? Que quererão dizer estas espadas sem dono, a estilar sangue e descoradas, neste lugar de paz? (Entra no túmulo.) Romeu! Oh, pálido! Quem mais? Quê! Também Páris? E encharcado de sangue? Oh! que hora dura teve culpa deste acontecimento lamentável? A senhora se mexe.
(Julieta desperta.)
     JULIETA — Ó meu bom frade, onde está meu senhor? Sei muito bem onde eu devia estar, onde me encontro. Mas onde está Romeu?
(Barulho dentro.)
     FREI LOURENÇO — Ouço bulha. Saí, senhora, desse ninho de morte, de contágio e sono contrário à natureza. Uma potência por demais forte para que a vençamos frustrou nossos intentos. Vem, bem logo! Teu marido em teu seio se acha morto; Páris também. Vem logo; vou levar-te para um convento de piedosas freiras. Não percas tempo com perguntas; vamos; a guarda está chegando. Vem, bondosa Julieta; não me atrevo a esperar mais.
     JULIETA — Vai, que eu daqui não sairei jamais. (Sai frei Lourenço.) Que vejo aqui? Um copo bem fechado na mão de meu amor? Certo: veneno foi seu fim prematuro. Oh! que sovina! Bebeste tudo, sem que me deixasses uma só gota amiga, para alivio. Vou beijar esses lábios; é possível que algum veneno ainda se ache neles, para me dar alento e dar a morte. (Beija-o.) Teus lábios estão quentes.
     PRIMEIRO GUARDA (dentro) — Vamos, guia-me, rapaz; qual é o caminho?
     JULIETA — Ouço barulho. Preciso andar depressa. Oh! sê bem-vindo, punhal! (Apodera-se do punhal de Romeu.) Tua bainha é aqui. Repousa ai bem quieto e deixa-me morrer. (Cai sobre o corpo de Romeu e morre.)
(Entram os homens da guarda, com o pajem de Páris.)
     PAJEM — É ali o ponto, onde está acesa a tocha.
     PRIMEIRO GUARDA — Há sangue pelo chão. Passai revista em todo o cemitério, e se encontrardes alguém, prendei-o. (Saem alguns guardas.) Oh vista dolorosa! Aqui se encontra, assassinado, o conde, e Julieta a sangrar de novo e morta recentemente, que há dois dias fora posta neste sepulcro. Ide depressa chamar os Capuletos e os Montecchios. Na busca prossegui vós outros.(Saem outros guardas.) Vemos o terreno de tantas desventuras; mas o terreno verdadeiro destas desgraças lastimáveis, só podemos ficar sabendo após maior estudo.
(Voltam alguns guardas com Baltasar.)
     SEGUNDO GUARDA — É o criado de Romeu; fomos achá-lo dentro do cemitério.
     PRIMEIRO GUARDA — Segurai-o com bem cautela, até que chegue o príncipe.
(Volta outro guarda, com frei Lourenço.)
     TERCEIRO GUARDA — Aqui está um frade que suspira e chora, sem parar de tremer. Nas mãos trazia uma pá e este ferro, e deste lado vinha do cemitério.
     PRIMEIRO GUARDA — São indícios suspeitos; segurai também o frade.
(Entra o príncipe com seu séqüito.)
     PRÍNCIPE — Que desgraça se deu aqui tão cedo, para tirar assim nossa pessoa de seu sono habitual?
(Entram Capuleto, a senhora Capuleto e outros.)
     CAPULETO — Por que esses gritos por toda parte? Que houve?
     SENHORA CAPULETO — Pelas praças o nome de Romeu o povo grita; outros, o de Julieta; outros, de Páris, correndo com clamores toda a gente para o lado do nosso monumento.
     PRÍNCIPE — Que horror é esse que nos fere a vista?
     PRIMEIRO GUARDA — Príncipe, aqui está, morto o conde Páris; morto, Romeu; e a que antes falecera, Julieta, quente está e outra vez morta.
     PRÍNCIPE — Investigai por outra parte como se deu este horroroso morticínio.
     PRIMEIRO GUARDA — Aqui está um frade e aqui, também, o criado de Romeu; instrumentos carregavam para arrombar o túmulo dos mortos.
     CAPULETO — Oh céus! Mulher, vê nossa filha: sangra! Enganou-se o punhal; sua bainha se acha vazia ao lado de Montecchio. Está mal colocado em nossa filha.
     SENHORA CAPULETO — Ai de mim! Este quadro só de mortes é como um toque fúnebre que a minha velhice chama para a sepultura.
(Entram Montecchio e outros.)
     PRÍNCIPE — Vem cá, Montecchio; cedo te levantas para mais cedo ver baixar teu filho.
     MONTECCHIO — O meu senhor! durante a noite a minha senhora faleceu; cortou-lhe o fôlego a tristeza do exílio de meu filho. Que mais conspira contra minha idade?
     PRÍNCIPE — Olha e verás.
     MONTECCHIO — O néscio! néscio! que costume é esse de, antes do pai, entrar na sepultura?
     PRÍNCIPE — Sela a boca do ultraje por um pouco, até que este mistério esclareçamos e fiquemos sabendo sua origem e verdadeiro curso. Depois disso, comandante serei de vossas dores e conduzir-vos-ei à própria morte. Até lá sossegai e que a desgraça se submeta à paciência. Apresentai-nos as pessoas suspeitas.
     FREI LOURENÇO — Dos presentes sou eu o mais suspeito, muito embora seja o que menos pode fazer algo, visto acusarem-me o lugar e a hora. Eis-me a acusar-me, a um tempo, e a defender-me, num só momento condenado e absolto.
     PRÍNCIPE — Dize então logo o que sobre isto sabes.
     FREI LOURENÇO — Serei breve, porque meu curto fôlego não é mais longo do que história insípida. Romeu, aqui sem vida, era marido desta Julieta, assim como ela, morta também aqui, era a fiel consorte deste Romeu. Fui eu que os desposei. O dia dessas núpcias clandestinas foi o do final juízo de Tebaldo, cuja morte baniu de nosso burgo o recente marido. Era por causa dele, não por Tebaldo, que Julieta se vinha definhando. Vós, com o fito de expulsar-lhe do peito essa tristeza, ao conde a prometestes, tencionando casá-la a contragosto. Procurou-me desvairada e pediu-me que inventasse qualquer recurso que a livrasse desse segundo casamento, ou então lá mesmo, sem vacilar, poria termo à vida. Dei-lhe então – por minha arte aconselhado – um estupefaciente que sobre ela o efeito produziu por mim visado, a aparência emprestando-lhe da morte. A Romeu escrevi nesse entrementes, para que ele aqui viesse nesta noite de horrores ajudar-me a retirá-la de seu falso sepulcro, pois o efeito do veneno nessa hora cessaria. Mas a pessoa que levou a carta, Frei João, detido foi por acidente, tendo-ma devolvido ontem à noite. Então, sozinho, na hora prefixada para ela despertar, vim retirá-la do túmulo dos seus, a idéia tendo de escondê-la na minha pobre cela, até chamar Romeu. Aqui chegando, porém – alguns minutos antes da hora de Julieta acordar – encontrei mortos antes de tempo o nobre conde Páris e o fiel Romeu. Julieta despertou. Roguei-lhe que fugisse e que aceitasse com paciência o que o céu lhe destinara. Nisso, um barulho me afastou do túmulo, sem que, em seu desespero, ela comigo se retirasse, tendo, ao que parece, posto termo à existência. Sei só isso. A ama se achava a par do casamento. Se algo nisto falhou por minha culpa, que minha velha vida, algumas horas antes do tempo, o expie em sacrifício, sob o rigor da mais severa pena.
     PRÍNCIPE — Por um santo homem sempre te tivemos. E o criado de Romeu, que nos informa?
     BALTASAR — Fui portador a meu senhor da nova da morte de Julieta. Ele, apressado, veio de Mântua para cá, para este mesmo túmulo, tendo-me ordenado que esta carta a seu pai desse bem cedo. Ao penetrar no túmulo, ameaçou-me de morte se eu não fosse logo embora e não o deixasse aqui.
     PRÍNCIPE — Dá-me essa carta; quero ver o que diz. E onde está o pajem do conde Páris, que chamou a guarda? Que fazia teu amo aqui, pequeno?
     PAJEM — Veio com flores para a sepultura de sua noiva, tendo-me ordenado que ficasse de parte. Obedeci-lhe. Depois, com luz, chegou um homem, para violar a sepultura, tendo logo sacado meu senhor contra ele a espada. Saí correndo e fui chamar a guarda.
     PRÍNCIPE — Confirma a carta o que nos disse o monge: como o amor decorreu, a falsa nova da morte dela. Aqui ele nos conta que veneno comprou de um boticário e que vinha morrer neste sepulcro, para ficar ao lado de Julieta. Onde se encontram esses inimigos? Capuleto! Montecchio! Vede como sobre vosso ódio a maldição caiu e como o céu vos mata as alegrias valendo-se do amor. Por minha parte, por ter condescendido com vós todos, dois parentes perdi. Fomos punidos.
     CAPULETO — Dá-me tua irmão, irmão Montecchio; é o dote de minha filha. Mais, pedir não posso.
     MONTECCHIO — Mas eu posso dar mais, pois hei de a estátua dela mandar fazer do mais puro ouro. Enquanto for Verona conhecida, nenhuma imagem terá tanto preço como a da fiel e mui veraz Julieta.
     CAPULETO — Romeu fama também dará à cidade; vítimas são de nossa inimizade.
     PRÍNCIPE — Esta manhã nos trouxe paz sombria: esconde o sol, de pesadume, o rosto. Ide; falai dos fatos deste dia; serei clemente, ou rijo, a contragosto, que há de viver de todos na memória de Romeu e Julieta a triste história.
(Saem.)