domingo, 1 de maio de 2011

William Shakespeare



Cena III

O mesmo. Quarto de Julieta. Entram Julieta e a ama.
     JULIETA — Sim, estas são as peças mais bonitas. Mas, gentil ama, deixa-me esta noite; desejo ficar só, pois necessito de rezar muito, para que consiga fazer sorrir o céu para o meu lado, pois bem sabeis: tenho a alma atormentada e cheia de pecados.
(Entra a senhora Capuleto.)
     SENHORA CAPULETO — Ocupada bastante, não? Necessitais de mim?
     JULIETA — Não, senhora; escolhemos, tão-somente, quanto nos pareceu mais necessário para amanhã vestir na cerimônia. Assim, vos peço me deixeis sozinha, dormindo a ama esta noite em vosso quarto, pois sei que vos achais assoberbada de ocupações para esta festa súbita.
     SENHORA CAPULETO — Boa noite, então. E tu, podes deitar-te; não temos precisão de teus serviços.
(Saem a senhora Capuleto e a ama.)
     JULIETA — Adeus. Deus sabe quando nos veremos outra vez. Pelas veias me passeia um medo frio e lânguido, que quase deixa o calor da vida inteiriçado. Vou chamá-los de novo para darem-me coragem. Ama!... Mas, por que vir cá? Precisarei representar sozinha meu terrível papel. Vamos, frasquinho. E se esta droga não fizer efeito? Terei de me casar amanhã cedo? Não; isto o impedirá. Fica aqui perto. (Põe de lado um punhal.) E se for um veneno que esse frade com astúcia me deu para matar-me, temendo o opróbrio que podia vir-lhe do casamento, por me haver casado com Romeu antes disso? Sinto medo. Contudo, quero crer, não o faria, pois como santo é tido há muito tempo. Não devo ter tão baixo pensamento. E se, depois de estar na sepultura, eu vier a despertar, sem que Romeu chegue para salvar-me? Oh caso horrível! Não ficarei asfixiada dentro da sepultura, cuja boca imunda não respira ar sadio, e, assim, morrendo sufocada sem vir o meu Romeu? Ou se eu viver, não será mui plausível que aquela imagem de negror e morte, associada ao pavor do próprio ponto – um sepulcro, carneira onde há centenas de meus antepassados; onde se acha desde pouco Tebaldo ensangüentado, a decompor-se em seu sudário branco; onde, assim dizem, em determinadas horas da noite espíritos vagueiam?... Ai! ai de mim! Pois não será possível que eu venha a despertar antes do tempo?... Aquele cheiro repugnante, os gritos que como o das mandrágoras, ao serem arrancadas da terra, influem loucura em todos quantos porventura os ouvem... Ao despertar não ficarei demente no meio desses medos pavorosos, pondo-me, louca, a remexer nos ossos de meus antepassados, e a puxar de seu lençol Tebaldo mutilado? Ou, tomada de fúria, com um osso de um dos meus bisavós, que irá servir-me de clava não farei saltar meu cérebro desesperado? Oh! vede! o espírito parece de meu primo, que anda em busca de Romeu, que espetou seu pobre corpo na ponta do punhal. Pára, Tebaldo! Romeu, aqui! Bebo isto por tua causa.
(Cai sobre o leito, para dentro das cortinas.)





Cena V

O mesmo. Quarto de Julieta.
(Entra a ama.)

     AMA — Senhora, olá! Julieta! É quase certo que ainda esteja a dormir. Eh, ovelhinha! Então, senhora? Então? Que dorminhoca! Então, amor? Senhora! Estou chamando... Coraçãozinho! Noiva!... Como! Muda? Agora desforrais a vossa parte, dormindo uma semana; mas garanto-vos que na noite que vem o Conde Páris repouso não terá, porque repouso também não possais ter. Deus me perdoe. Santa Virgem e amém! Que sono calmo! Mas preciso acordá-la. Olá, senhora! Que o conde venha vos tirar da cama, e hei de vos espantar. Não falei certo? Como assim? Já vestistes toda a roupa, e outra vez a dormir? Vou despertá-la, Senhora! Olá!... Oh Deus!... Socorro! A patroa está morta!... Aqui!... Socorro! Oh dia triste! Assim nunca eu nascesse. Aqua vitae! Senhor! Senhora!... Acudam!..
(Entra a senhora Capuleto.)
     SENHORA CAPULETO — Que barulheira é essa?
     AMA — Oh dia triste!
     SENHORA CAPULETO — Que aconteceu?
     AMA — Olhai, senhora... Oh dia!
     SENHORA CAPULETO — Oh! minha única filha! Minha filha! Reanima-te, olha para mim, ou deixa-me morrer também contigo. Aqui! Socorro! Vai chamar gente!
(Entra Capuleto.)
     CAPULETO — Que vergonha! Trazei Julieta logo; o noivo já chegou.
     AMA — Está sem vida, morta, sem vida! Oh dia desgraçado!
     SENHORA CAPULETO — Oh que dia! Morreu! Morreu! Morreu!
     CAPULETO — Deixai-me vê-la. Oh dor! Já está gelada. O sangue está parado; os membros, duros. Estes lábios e a vida há muito tempo separados já estão. A morte se acha sobre ela como geada mui precoce sobre a flor mais gentil de todo o campo.
     AMA — Oh dia lamentável!
     SENHORA CAPULETO — Oh tristeza!
     CAPULETO — A morte que a tirou de mim com o fito de fazer-me gemer, a língua me ata, não me deixando pronunciar palavra.
(Entram frei Lourenço e Páris, com músicos.)
     FREI LOURENÇO — A noiva já está pronta para a igreja?
     CAPULETO — Sim, para ir para a igreja, sem que nunca possa de lá voltar. Ó filho, a morte, na véspera do dia de tuas núpcias, deitou-se com tua noiva; é minha herdeira; cortejou minha filha. Morrer quero, para levar à morte o que possuo: vida, bens; tudo é dela.
     PÁRIS — Quis tanto ver a face deste dia, para enfim contemplar este espetáculo?
     SENHORA CAPULETO — Dia infeliz, maldito, desgraçado! A hora mais triste que já viu o tempo em toda a sua peregrinação comprida e laboriosa. Uma só filha, uma só, pobre filha, e tão amada, para gozo e consolo um ser apenas, e a cruel morte arrancar-ma, assim, da vista
     AMA — Oh dia triste! Oh dia triste! Oh dor! O dia mais escuro e lamentável que eu vi em toda. a vida. Oh dia triste! Oh dia odioso! Oh dia! Oh dia triste Nunca vi dia de tão densas trevas. Oh dia triste! Oh dia!
     PÁRIS — Ludibriado, ofendido, separado desprezado, destruído... Morte odiosa, ludibriado por ti, por ti, cruel morte, arruinado de todo. Oh amor! Oh vida...! Não, vida não: amor na própria morte!
     CAPULETO — Odiado, desprezado, desolado, martirizado, morto! Inconsolável tempo, por que motivo vieste agora matar, matar nossa solenidade? Oh filha! Filha, não: alma querida! Já não vives! morreste! Ah! minha filha já não vive e, com ela, sepultada vai ser minha alegria.
     FREI LOURENÇO — Calma! peço-vos; a cura da desordem vir não pode da desorientação. Tal como vós, tinha o céu parte nesta bela criança. Agora o céu tem tudo, o que é, por certo, melhor para a donzela. Não vos fora possível subtrair da morte a parte que tínheis nela, mas o céu à dele vida eterna vai dar. O que queríeis era vê-la elevada; todo o vosso céu consistia justamente nisso. E agora a lastimais, vendo-a exaltada, tão acima das nuvens, no alto céu? Com vosso amor amais a vossa filha tão mal que vos mostrais desesperados por sabê-la tão bem? As bem casadas não são as que assim vivem muito tempo; mas bem casada está quem morre cedo. Interrompei o pranto; sobre o belo corpo espalhai bastante rosmaninho, e, tal como é de praxe, em suas vestes mais vistosas levai-o para a igreja. Embora chorar mande a natureza, ri a razão ao choro da tristeza.
     CAPULETO — Tudo o que havia para o festival usado ora vai ser no funeral. Os instrumentos viram melancólicos sinos; nosso festim, jantar funéreo; nossos hinos solenes, puras nênias; as flores nupciais irão de enfeite servir para o cadáver, transmudando-se, assim, em seu contrário as coisas todas.
     FREI LOURENÇO — Retirai-vos, senhor; acompanhai-o, minha senhora; e vós, conde, também. Que todos se preparem para o belo corpo levar à tumba. Porventura o céu vos pune por qualquer maldade; não o irriteis, pois essa é a sua vontade.
(Saem Capuleto, a senhora Capuleto, Páris e monge.)
     PRIMEIRO MÚSICO — Por minha fé, podemos guardar as gaitas e ir embora.
     AMA — Ah! meus homens, guardai-as, guardai-as, que isso é um caso doloroso!
     PRIMEIRO MÚSICO — Oh! é certo; poderia ser melhor.
(Entra Pedro.)
     PEDRO — Músicos! Olá! "Alegra-te, coração! Alegra-te, coração!" Se quereis que eu viva, tocai "Alegra-te coração!"
     PRIMEIRO MÚSICO — Por que "Alegra-te, coração?"
     PEDRO — Oh! músicos, porque meu próprio coração toca "O coração me pesa de tristeza". Oh! tocai uma litania alegre, para reconfortar-me.
     SEGUNDO MÚSICO — Não, nada de litanias; não é hora de tocar música.
     PEDRO — Então não quereis tocar?
     MÚSICOS — Não.
     PEDRO — Nesse caso vou tratar-vos como o mereceis.
     PRIMEIRO MÚSICO — De que modo pretendes tratar-nos?
     PEDRO — Não será com dinheiro, é claro; mas com pilhérias. Vou arranjar-vos um arranhador de rabeca.
     PRIMEIRO MÚSICO — Nesse caso eu arranjarei para ti um servente de cozinheiro.
     PEDRO — E eu vos atirarei na cabeça a faca do servente de cozinheiro. Eu sou assim; não levo semínimas para casa. Vou fazer de vós ré e fá. Tomastes nota?
     PRIMEIRO MÚSICO — Se de nós fizerdes ré e fá, viraremos notas.
     SEGUNDO MÚSICO — Por obséquio, por obséquio: esconde essa faca e mostra o espírito.
     PEDRO — Tomai cuidado com meu espirito! Vou malhar-vos com meu espírito de aço e embainhar minha faca. Respondei-me como homens: Quando a dor e a tristeza libertinas me oprimem a cabeça e o coração, a música de notas argentinas... Por que "notas argentinas"? Por que "música de notas argentinas"? Que dizeis a isso, Simão Catling?
     PRIMEIRO MÚSICO — Ora, senhor, porque a prata tem um som agradável.
     PEDRO — Tolice! Que pensais, Hugo Rabeca?
     SEGUNDO MÚSICO — Penso que "notas argentinas" significam que os músicos tocam suas notas para adquirir prata.
     PEDRO — Oh! peço perdão. E sois cantores! Vou dar a explicação por vós. A frase "música de notas argentinas" significa que os músicos nunca vêem ouro com suas notas...a música de notas argentinas com seu poder me deixa outra vez são.
     PRIMEIRO MÚSICO — Que sujeito pestilencioso!
     SEGUNDO MÚSICO — Que se enforque! Vamos; entremos, para assistir ao enterro e esperar pelo jantar.
(Saem.)