sábado, 30 de abril de 2011

William Shakespeare



Cena IV

O mesmo Uma rua. Entram Romeu, Mercúcio, Benvólio, com cinco ou seis mascarados, portadores de tochas e outras pessoas.
     ROMEU — Por escusas faremos um discurso, ou entramos sem nenhuma apologia?
     BENVÓLIO — Muito falar destoa deste dia. Não precisamos hoje de Cupido com venda sobre os olhos e arco tártaro de ripa multicor, que infunde medo, como espantalho o faz, no mulherio. Não; nem também de prólogo matado, que o ponto diz antes de nossa entrada. Que nos tomem por quem melhor acharem; mediremos com todos alguns passos e, após, saímos.
     ROMEU — Dai-me uma das tochas; não me acho hoje disposto para saltos. Estando enfarruscado, aclaro a estrada.
     MERCÚCIO — Não; tereis de dançar, gentil Romeu.
     ROMEU — Não; podeis crer-me: tendes sapatinhos de sola leve, própria para dança. Eu, tenho alma de chumbo que, prendendo-me à terra, não me deixa dar um passo.
     MERCÚCIO — Sois um apaixonado. Por empréstimo tomai as lestes asas de Cupido, que heis de pairar por sobre a mediania.
     ROMEU — Tão traspassado estou por suas setas que suas lestes asas não conseguem transportar-me para o alto: tão peado, que não posso deixar a dor obscura, sob o fardo do amor gemendo sempre.
     MERCÚCIO — Mas para estar sob ele, é necessário que carregueis o amor, peso excessivo para coisa tão terna.
     ROMEU — Coisa terna julgais que seja o amor? Não; muito dura: dura e brutal, e fere como espinho.
     MERCÚCIO — Se o amor convosco é duro, sede duro também com ele, revidando todas as pancadas que der. Ponde-o no chão. Dai-me uma cobertura para o rosto. Em cima de uma máscara ponho outra. Que me importa que o olhar curioso possa perceber a feiúra? Por mim hão de corar estas salientes sobrancelhas.
     BENVÓLIO — Vamos bater e entrar e, uma vez dentro, que bom uso das pernas todos façam.
     ROMEU — Dai-me uma tocha; que esses rapazolas de leve coração cócegas façam com os sapatos nos juncos insensíveis. Já meu avô dizia sentencioso: seguro a luz e fico a observar tudo. Fora, muita algazarra; eu, triste e mudo.
     MERCÚCIO — Mudo é o rato no charco, diz o guarda. Se mudo te tornares, arrancamos-te do charco – com licença! – de Cupido, onde estás enterrado até às orelhas. Sigamos, que isto é acender luz de dia.
     ROMEU — Não, não é isso.
     MERCÚCIO — Minha alegoria, senhor, indica que, como de dia, gastamos nossa luz inutilmente. Conservai esse dito sempre em mente, que mais saber contém do que, reunidos, todos os nossos cinco ou seis sentidos.
     ROMEU — Sim, é o que faço nesta mascarada; mas é absurdo.
     MERCÚCIO — Por que não vos agrada?
     ROMEU — Tive um sonho esta noite.
     MERCÚCIO — Oh! eu também.
     ROMEU — Sobre quê?
     MERCÚCIO — Sonho algum verdade tem.
     ROMEU — Quando dormimos, tudo neles cabe.
     MERCÚCIO — Oh! Visitou-vos a Rainha Mab.
     BENVÓLIO — Quem é a Rainha Mab?
     MERCÚCIO — É a parteira das fadas, que o tamanho não chega a ter de uma preciosa pedra no dedo indicador de alta pessoa. Viaja sempre puxada por parelha da pequeninos átomos, que pousam de través no nariz dos que dormitam. As longas pernas das aranhas servem-lhe de raios para as rodas; é a capota de asa de gafanhotos; os tirantes, das teias mais sutis; o colarzinho, de úmidos raios do luar prateado. O cabo do chicote é um pé de grilo; o próprio açoite, simples filamento. De cocheiro lhe serve um mosquitinho de casaco cinzento, que não chega nem à metade do pequeno bicho que nos dedos costuma arredondar-se das criadas preguiçosas. O carrinho de casca de avelã vazia, feito foi pelo esquilo ou pelo mestre verme, que desde tempo imemorial o posto mantém de fabricante de carruagens para todas as fadas. Assim posta, noite após noite ela galopa pelo cérebro dos amantes que, então, sonham com coisas amorosas; pelos joelhos dos cortesãos, que com salamaleques a sonhar passam logo; pelos dedos dos advogados, que a sonhar começam com honorários; pelos belos lábios das jovens, que com beijos logo sonham, lábios que Mab, às vezes, irritada, deixa cheios de pústulas, por vê-los com o hálito estragado por confeitos. Por cima do nariz de um palaciano por vezes ela corre, farejando logo ele, em sonhos, um processo gordo. Com o rabinho enrolado de um pequeno leitão de dízimo, ela faz coceiras no nariz do vigário adormecido, que logo sonha com mais um presente. Na nuca de um soldado ela galopa, sonhando este com cortes de pescoço, ciladas, brechas, lâminas de Espanha e copázios bebidos à saúde, de cinco braças de alto. De repente, porém, estoura pelo ouvido dele, que estremece e desperta e, aterrorado, reza uma ou duas vezes e, de novo, põe-se a dormir. É a mesma Rainha Mab que a crina dos cavalos enredada deixa de noite e a cabeleira grácil dos elfos muda em sórdida melena que, destrançada, augura maus eventos. Essa é a bruxa que, estando as raparigas de costas, faz pressão no peito delas, ensinando-as, assim, como mulheres, a agüentar todo o peso dos maridos. É ela, ainda...
     ROMEU — Paz, Mercúcio! Paz!
     MERCÚCIO — Sim, só falo de sonhos, prole ociosa de um cérebro vadio, a qual de nada provém senão da inútil fantasia, que é tão firme como o ar, mais inconstante do que o vento que faz a corte ao frio seio do norte e, sendo repelido, volta de lá bufando e o rosto vira para o sul orvalhoso.
     BENVÓLIO — Pois o vento de que falais nos toca para longe de nós próprios. A ceia está acabada; chegamos muito tarde.
     ROMEU — Oh! muito cedo, tenho receio. Apreende meu espírito algo que ainda pende das estrelas e que vai iniciar seu fatal curso na festa desta noite, pondo termo à vida desprezível que eu carrego no peito, com qualquer delito absurdo de morte extemporânea. Mas Aquele que se acha no timão de minha viagem vai dirigir-me a vela. Adiante, amigos
     BENVÓLIO — Tocai, tambor!
(Saem.)