quinta-feira, 21 de abril de 2011

Miguel de Cervantes



D. Quixote de La Mancha
CAPÍTULO VIII
Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos
moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação.
Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento, que há naquele campo. Assim que D. Quixote os viu, disse para o escudeiro:
— A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar; porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.
— Quais gigantes? — disse Sancho Pança.
— Aqueles que ali vês — respondeu o amo — de braços tão compridos, que alguns os têm de quase
duas léguas.
— Olhe bem Vossa Mercê — disse o escudeiro — que aquilo não são gigantes, são moinhos de
vento; e os que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as
mós.
— Bem se vê — respondeu D. Quixote — que não andas corrente nisto das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha.
Dizendo isto, meteu esporas ao cavalo Rocinante, sem atender aos gritos do escudeiro, que lhe repetia serem sem dúvida alguma moinhos de vento, e não gigantes, os que ia acometer. Mas tão cego ia ele em que eram gigantes, que nem ouvia as vozes de Sancho nem reconhecia, com o estar já muito perto, o que era; antes ia dizendo a brado:
— Não fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos investe.
Levantou-se neste com menos um pouco de vento, e começaram as velas a mover-se; vendo isto D.
Quixote, disse:
— Ainda que movais mais braços do que os do gigante Briareu, heis-de mo pagar.
E dizendo isto, encomendando-se de todo o coração à sua senhora Dulcinéia, pedindo-lhe que, em tamanho transe o socorresse, bem coberto da sua rodela, com a lança em riste, arremeteu a todo o galope do Rocinante, e se aviou contra o primeiro moinho que estava diante, e dando-lhe uma lançada na vela, o vento a volveu com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando desastradamente cavalo e cavaleiro, que foi rodando miseravelmente pelo campo fora.
Acudiu Sancho Pança a socorrê-lo, a todo o correr do seu asno; e quando chegou ao amo,
reconheceu que não se podia menear, tal fora o trambolhão que dera com o cavalo.
— Valha-me Deus! — exclamou Sancho — Não lhe disse eu a Vossa Mercê que reparasse no que
fazia, que não eram senão moinhos de vento, e que só o podia desconhecer quem dentro na cabeça
tivesse outros?
— Cala a boca, amigo Sancho — respondeu D. Quixote; — as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças; o que eu mais creio, e deve ser verdade, é que aquele sábio Frestão, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos, para me falsear a glória de os vencer, tamanha é a inimizade que me tem; mas ao cabo das contas, pouco lhe hão-de valer as suas más artes contra a bondade da minha espada.
— Valha-o Deus, que o pode! — respondeu Pança.
E ajudando-o a levantar, o tornou a subir para cima do Rocinante, que estava também meio
desasado.
Conversando no passado sucesso, continuaram caminho para Porto Lápice, porque por ali (dizia D. Quixote) não era possível que se não achassem muitas e diversas aventuras, por ser sítio de grande passagem. Que pesar o ver-se então sem lança! (como ele dizia ao escudeiro). Mas dizia-lhe também logo:
— Recordo-me ter lido que outro cavaleiro espanhol, por nome Diogo Peres de Vargas, tendo-se-lhe numa batalha quebrado a espada, esgalhou de uma azinheira uma pesada arranca, e só com ela fez tais coisas naquele dia, e a tantos mouros machucou, que lhe ficou de apelido “o Machuca”; e assim ele como os seus descendentes se ficaram nomeando desde aquele dia Vargas e Machuca.
Refiro-te isto, porque a primeira azinheira ou carvalho que se me depare, tenciono sacar-lhe outro pau tão bom como aquele, e fazer com ele tais façanhas, que te julgues bem afortunado por teres chegado a presenciá-las, e poderes ser testemunha de coisas tão convizinhas do impossível.
— Por Deus, senhor D. Quixote — disse Sancho — creio tudo que Vossa Mercê me diz; mas olhe
se se endireita um poucochinho, que parece ir descaindo para a banda; há-de ser do trambolhão que apanhou.
— E é verdade — respondeu D. Quixote; — e se me não queixo com a dor, é porque aos cavaleiros
andantes não é dado lastimarem-se de feridas, ainda que por elas lhes saiam as tripas.
— Sendo assim, já estou calado — respondeu Sancho; — mas sabe Deus se eu não achava melhor
que Sua Mercê se queixara quando lhe doesse alguma coisa. De mim sei eu, que, em me doendo
seja o que for, hei-de por força berrar, se é que a tal regra, de não dar mostras de sentir, não chega também aos escudeiros da cavalaria andante.
Não deixou de se rir D. Quixote da simpleza do seu pajem; e declarou-lhe que podia queixar-se
quantas vezes quisesse, com vontade ou sem ela, que até aquela data nunca lera proibição disso nos livros de cavalaria.
Advertiu-lhe Sancho que reparasse em que eram horas de comer. Respondeu-lhe o amo que por
enquanto lhe não era necessário; que embora comesse ele, se lhe parecia.
Com esta licença, ajeitou-se Pança o melhor que pôde sobre o seu jumento, e tirando dos alforjes o que para eles tinha metido, ia caminhando e comendo atrás do amo com todo o seu descanso; e de quando em quando empinava a borracha com tanto gosto, que faria inveja ao mais refestelado bodegueiro de Málaga. E enquanto ia assim amiudando os tragos, não se lembrava de nenhuma promessa que o amo lhe tivesse feito; nem tinha por trabalho, antes por vida mui regalada, o andar buscando as aventuras, por perigosas que fossem.
(…)