segunda-feira, 18 de abril de 2011

Monteiro Lobato



O capoeira "O 22 da Marajó"  
 
O 22 da "marajó" era um imperial marinheiro, mestre em desordens e amigo de revirar de pernas para cima kiosques de portugueses. Rapazinho bonito, imperava na saída onde suas proezas de capoeira excepcional andavam de boca embora discutidas como façanhas de Rolando. E tais fez que o governo incomodado, deportou-o  para o norte, a servir no Alto Amazonas em canhoneira da flotilha estacionada no Pará.  A mudança de lima regenerou-se e o rapaz resolvendo tirar partido de seus dotes plásticos, ferrou namoro   com a mulher de um shipchandler, da qual se tornou amante.
 
O shipchamdler  morreu e o 22  casou-se com a viúva, herdeira de um paco de quatrocentos contos de reis.  Pediu baixa,  obteve-a e foi com a esposa em viagem de núpcias à Europa, onde permaneceu dois anos. Ao cabo regressou à pátria,  elegendo o Rio de Janeiro para residência definitiva.
 
Mas quanto mudara!  Transformado num perfeito gentleman, embasbacava a rua do Ouvidor com o apuro dos trajes, as polainas, as luvas, a cartola café-com-leite.
 
Quem é?  Quem é? Ninguém sabia.
 
- Algum fidalgo certamente cochichava.  Não vêem que modos distintos?
 
E o 22, impávido, patroneando, de monóculo no olhar, a olhar de cima para os homens e as coisas...
 
Tinha hábitos certos e todos os dias passava pelo Largo de São Francisco, como paca pelo carreiro.
 
Aconteceu, porém, que ali era ponto de uma roda de rapazes chiques, fortemente despeitados ante a esmagadora elegância do desconhecido, sinal perigoso, sem dúvida, em matéria de esporte feminino.       Os quais rapazes, depois de muito cochicho, deliberaram quebrar a proa ao novo concorrente, apenas aguardando para isso a boa oportunidade.
 
Certa vez em que o Petrônio passava mais imponente do que nunca, coincidiu aproximar-se da roda chique um capoeira mordedor, que se gabava de ser mestre em "soltas".
 
Quem sabe hoje o que é "solta", nesta época de kikees e shootes?  Solta era uma cabeçada sem hands, isto é, sem encostar a mão no adversário.
 
Mas o capoeira chegou e mordeu-os em cinco mil réis.
 
- Perfeitamente, responderam os rapazes, mas primeiro hás de sapecar uma solta naquele freguês que ali vai de monóculo.
 
- É já! Exclamou o capoeirista, gingando o corpo. E tirando o chapéu foi portar-se  na calçada  por onde vinha o 22, de martelo e monóculo sacudindo passos de lord, muito esticado dentro do seu croisé cortado em Londres.
 
- Um, dois,  três...Quando Petrônio o defrontou o capoeira avança e despeja-lhe uma formidável e primorosa cabeçada .
 
O desconhecido, porém, quebrou o corpo, e a cabeça do atacante foi de encontro à parede, ao mesmo tempo em que um pé bem manejado plantava-o no chão com elegantíssima rasteira.  O mordedor, tonto e confuso, ergueu-se para desabar de novo, cerceado por outra gentil rasteira.  Passara imprevistamente de agressor a agredido e, desnorteado, deu sebo às canalhas, indo apalpar o galo a cem passos à distância.
 
Enquanto isso o Petrônio, consertando a gravata com grande calma, dirigiu a palavra a assombradíssima roda elegante.
 
- Só  uma  besta  destas dá "soltas" sem negaças.  Já dizia o Cincinato Quebra-louças: soltas sem negaças só em lampião de esquina.