O capoeira "O 22 da Marajó"
O 22 da "marajó" era um imperial marinheiro, mestre em desordens e amigo de revirar de pernas para cima kiosques de portugueses. Rapazinho bonito, imperava na saída onde suas proezas de capoeira excepcional andavam de boca embora discutidas como façanhas de Rolando. E tais fez que o governo incomodado, deportou-o para o norte, a servir no Alto Amazonas em canhoneira da flotilha estacionada no Pará. A mudança de lima regenerou-se e o rapaz resolvendo tirar partido de seus dotes plásticos, ferrou namoro com a mulher de um shipchandler, da qual se tornou amante.
O shipchamdler morreu e o 22 casou-se com a viúva, herdeira de um paco de quatrocentos contos de reis. Pediu baixa, obteve-a e foi com a esposa em viagem de núpcias à Europa, onde permaneceu dois anos. Ao cabo regressou à pátria, elegendo o Rio de Janeiro para residência definitiva.
Mas quanto mudara! Transformado num perfeito gentleman, embasbacava a rua do Ouvidor com o apuro dos trajes, as polainas, as luvas, a cartola café-com-leite.
Quem é? Quem é? Ninguém sabia.
- Algum fidalgo certamente cochichava. Não vêem que modos distintos?
E o 22, impávido, patroneando, de monóculo no olhar, a olhar de cima para os homens e as coisas...
Tinha hábitos certos e todos os dias passava pelo Largo de São Francisco, como paca pelo carreiro.
Aconteceu, porém, que ali era ponto de uma roda de rapazes chiques, fortemente despeitados ante a esmagadora elegância do desconhecido, sinal perigoso, sem dúvida, em matéria de esporte feminino. Os quais rapazes, depois de muito cochicho, deliberaram quebrar a proa ao novo concorrente, apenas aguardando para isso a boa oportunidade.
Certa vez em que o Petrônio passava mais imponente do que nunca, coincidiu aproximar-se da roda chique um capoeira mordedor, que se gabava de ser mestre em "soltas".
Quem sabe hoje o que é "solta", nesta época de kikees e shootes? Solta era uma cabeçada sem hands, isto é, sem encostar a mão no adversário.
Mas o capoeira chegou e mordeu-os em cinco mil réis.
- Perfeitamente, responderam os rapazes, mas primeiro hás de sapecar uma solta naquele freguês que ali vai de monóculo.
- É já! Exclamou o capoeirista, gingando o corpo. E tirando o chapéu foi portar-se na calçada por onde vinha o 22, de martelo e monóculo sacudindo passos de lord, muito esticado dentro do seu croisé cortado em Londres.
- Um, dois, três...Quando Petrônio o defrontou o capoeira avança e despeja-lhe uma formidável e primorosa cabeçada .
O desconhecido, porém, quebrou o corpo, e a cabeça do atacante foi de encontro à parede, ao mesmo tempo em que um pé bem manejado plantava-o no chão com elegantíssima rasteira. O mordedor, tonto e confuso, ergueu-se para desabar de novo, cerceado por outra gentil rasteira. Passara imprevistamente de agressor a agredido e, desnorteado, deu sebo às canalhas, indo apalpar o galo a cem passos à distância.
Enquanto isso o Petrônio, consertando a gravata com grande calma, dirigiu a palavra a assombradíssima roda elegante.
- Só uma besta destas dá "soltas" sem negaças. Já dizia o Cincinato Quebra-louças: soltas sem negaças só em lampião de esquina.