sexta-feira, 8 de abril de 2011

José de Alencar

jose de alencar
A Pata da Gazela
I
Estava parada na Rua da Quitanda, próximo à da Assembléia, uma linda vitória, puxada por soberbos cavalos do Cabo.
Dentro do carro havia duas moças; uma delas, alta e esbelta, tinha uma presença encantadora; a outra, de pequena
estatura,
muito delicada de talhe, era talvez mais linda que sua companheira.
Estavam ambas elegantemente vestidas, e conversavam a respeito das compras que já tinham realizado ou das que ainda
pretendiam fazer.
-- Daqui aonde vamos? perguntou a mais baixa, vestida de roxo claro.
-- Ao escritório de papai: talvez ele queira vir conosco. Na volta passaremos pela Rua do Ouvidor, respondeu a mais
esbelta,
cujo talhe era desenhado por um roupão cinzento.
O vestido roxo debruçou-se de modo a olhar para fora, no sentido contrário àquele em que seguia o carro, enquanto o
roupão, recostando-se nas almofadas, consultava uma carteirinha de lembranças, onde naturalmente escrevera a nota de
suas
encomendas.
-- O lacaio ficou-se de uma vez! disse o vestido roxo com um movimento de impaciência.
-- É verdade! respondeu distraidamente a companheira.
Estas palavras confirmavam o que aliás indicava o simples aspecto da carruagem: as senhoras estavam à espera do
lacaio,
mandado a algum ponto próximo. A impaciência da moça de vestido roxo era partilhada pelos fogosos cavalos, que
dificilmente conseguia sofrear um cocheiro agaloado.
Depois de alguns momentos de espera, sobressaltou-se o roupão cinzento, e conchegando-se mais às almofadas, como
paraocultar-se no fundo da carruagem, murmurou:
-- Laura!... Laura!...
E como sua amiga não a ouvisse, puxou-lhe pela manga.
-- O que é, Amélia?
-- Não vês? Aquele moço que está ali defronte nos olhando.
-- Que. tem isto? disse Laura sorrindo.
-- Não gosto! replicou Amélia com um movimento de contrariedade. Há quanto tempo está ali e sem tirar os olhos de
mim?
-- Volta-lhe as costas!
-- Vamos para diante.
-- Como quiseres.
Avisado o cocheiro, avançou alguns passos, de modo a tirar ao curioso a vista do interior do carro; mas o mancebo não
desanimou por isso, e passando de uma a outra porta, tomou posição conveniente para contemplar a moça com
admiração
franca e apaixonada.
Simples no traje, e pouco favorecido a respeito de beleza; os dotes naturais que excitavam nesse moço alguma atenção
eram
uma vasta fronte meditativa e os grandes olhos pardos, cheios do brilho profundo e fosforescente que naquele momento
derramavam pelo semblante de Amélia.
Havia minutos que, percorrendo a Rua da Quitanda em sentido oposto à direção do carro, avistara a moça recostada nas
almofadas, e sentira a seu aspecto viva impressão. Sem disfarce ou acanhamento, recostando-se à ombreira de uma
porta de
escritório, esqueceu-se naquela ardente contemplação.
O coração é um solo. Vale onde brotam as paixões, como os outros vales da natureza inanimada, ele tem suas estações,
suas
quadras de aridez ou de seiva, de esterilidade ou de abundância.
Depois das grandes borrascas e chuvas, os calores do sol produzem na terra uma fermentação, que forma o húmus; a
semente, caindo aí, brota com rapidez. Depois das grandes dores e das lágrimas torrenciais, forma-se também no
coração do
homem um húmus poderoso, uma exuberância de sentimento que precisa de expandir-se. Então um olhar, um sorriso,
que aí
penetre, é semente de paixão, e pulula com vigor extremo.
O moço parecia estar nessas condições: ele trajava luto pesado, não somente nas roupas negras, como na cor macilenta
das
faces nuas, e na mágoa que lhe escurecia a fronte.
Notando Amélia a insistência do mancebo, ficou vivamente contrariada. Aquele olhar profundo, que parecia despedir os
fogos surdos de uma labareda oculta, incutia nela um desassossego íntimo. Agitava-se impaciente, como uma criatura
no meio
de um sono inquieto ou mesmo de um ligeiro pesadelo.
Até que abriu o chapeuzinho-de-sol, para interceptar a contemplação apaixonada de que era objeto. Nesta ocasião,
Laura,
que freqüentemente se debruçava para ver quando vinha o lacaio, retraiu o corpo com vivacidade:
-- Enfim; aí vem!
-- Felizmente! disse Amélia.O lacaio aproximava-se a passos medidos; trazia na mão um embrulho de papel azul, que o atrito dos dedos e a
oscilação
dos objetos envoltos desfizera, obrigando o portador a apertá-lo de vez em quando.
Julgando ao cabo de alguns instantes que o lacaio já tocava o estribo da carruagem, Amélia, tomando um tom
imperativo,
disse para o cocheiro:
-- Vamos! vamos!
Ao aceno que lhe fez o cocheiro, o lacaio correu, chegando a tempo de apanhar o carro, que partia ao trote largo da
fogosa
parelha. Deitar o embrulho na caixa da vitória, rodear em dois saltos e galgar o estribo da almofada, foi para o criado,
habituado a essa manobra, negócio de um instante. Não percebera ele, porém, que abrindo-se o papel com a corrida, um
dos
objetos nele contidos escorregara e, justamente na ocasião de deitar o embrulho na caixa do carro, caíra na calçada.
Laura, que se inclinara com vivo interesse para tomar o embrulho das mãos do lacaio, tivera um pressentimento do
acidente,
ao ver o papel desenrolado. Fechando-o rapidamente e escondendo-o por baixo do assento da vitória, ela debruçou-se
ainda
uma vez para verificar se com efeito alguma coisa havia caído. Ao mesmo tempo acompanhava o movimento com estas
palavras de contrariedade:
-- Como ele manda isto! Por mais que se lhe recomende!
Laura nada viu, porque já a vitória rodava ligeiramente sobre os paralelepípedos.
Nesse momento, porém, dobrando a Rua da Assembléia, se aproximara um moço elegante não só no traje do melhor
gosto,
como na graça de sua pessoa: era sem dúvida um dos príncipes da moda, um dos leões da Rua do Ouvidor; mas desse
podemos assegurar pelo seu parecer distinto que não tinha usurpado o título.
O mancebo viu casualmente o lacaio quando passara por ele correndo, e percebeu que um objeto caíra do embrulho.
Naturalmente não se dignaria abaixar para apanhá-lo, nem mesmo deitar-lhe um olhar, se não visse aparecer ao lado da
vitória o rosto de uma senhora, que o aspecto da carruagem indicava pertencer à melhor sociedade.
Então apressou-se, para ter ocasião de fazer uma fineza, e pretexto de conhecer a senhora, que lhe parecera bonita. Os
leões
são apaixonadíssimos de tais encontros; acham-lhes um sainete que destrói a monotonia das relações habituais.
Quando o moço ergueu-se com o objeto na mão, já o carro dobrava a Rua Sete de Setembro. Ficou ele um momento
indeciso, olhando em torno, como se esperasse alguma informação a respeito da pessoa a quem pertencia o carro. Sem
dúvida a senhora era conhecida em alguma loja de fazendas; talvez tivesse aí feito compras.
Não obtendo, porém, informações, nem colhendo resultado da pergunta que fizera a um caixeiro próximo, resolveu-se a
meter o objeto no bolso e seguir seu caminho.
II
Horácio de Almeida, o nosso leão, voltou a casa à hora do costume, quatro da tarde.
Os sucessivos encontros da Rua do Ouvidor; a conversa no Bernardo; a visita indispensável ao alfaiate; as anedotas do
Alcázar na noite antecedente; a crônica anacreôntica do Rio de Janeiro, chistosamente comentada; algumas rajadas de
maledicência, que é a pimenta social; todas essas ocupações importantes, que absorvem a vida do leão, distraíram
Horácio a
ponto de se esquecer ele do objeto guardado no bolso do paletó.
Como admitir que um príncipe da moda não aproveitasse a aventura do carro, para sobre ela bordar um romance de rua,
com que excitasse a curiosidade dos amigos? Realmente é admirável; e seria incompreensível se não fosse a
circunstância deter poucos passos adiante encontrado uma das mais ricas herdeiras do Brasil, a quem o nosso leão arrastava... ia dizer a
asa,
mas isso seria anacronismo; dizia-se no tempo em que os leões se chamavam galos; hoje deve dizer-se arrastar a juba; é
mais
bonito e indica mais submissão. Arrastar a asa é enfunar-se; arrastar a juba é prostrar-se.
Foi só quando, encostado em sua otomana, descansava para o jantar, que Horácio, procurando a carteira de charutos no
bolso do fraque, lembrou-se do objeto. Teve então curiosidade de examiná-lo: sabia o que era; na ocasião de apanhá-lo
reconhecera o pé de uma botina de senhora; mas não fizera grande reparo.
Agora, porém, que de novo o tinha diante dos olhos, a sós em seu aposento, e despreocupado da idéia de o restituir,
Horácio
achou o objeto digno de séria atenção; e aproximando-se da janela, começou um exame consciencioso.
Era uma botina, já o sabemos; mas que botina! Um primor de pelica e seda, a concha mimosa de uma pérola, a faceira
irmã
do lindo chapim de ouro da borralheira; em uma palavra a botina desabrochada em flor, sob a inspiração de algum
artista
ignoto, de algum poeta de ceiró e torquês.
Não era, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o nosso leão; eram
sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na pelica os contornos do pezinho
desconhecido. A botina fora servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem conservada, o desmaio de sua
primitiva cor
bronzeada e o esfrolamento da sola indicavam bastante uso.
Se fosse um calçado em folha, saído da loja, não teria grande valor aos olhos do nosso leão, habituado não só a ver,
como a
calçar, as obras primas de Milliès e Campàs. Talvez reparando muito naquela peça que tinha nas mãos, notasse maior
elegância no corte, e um apuro escrupuloso na execução; porém mais natural seria escapar-lhe essa mínima
circunstância.
Mas a botina achada já não era um artigo de loja, e sim o traste mimoso de alguma beleza, o gentil companheiro de uma
moça
formosa, de quem ainda guardava a impressão e o perfume. O rosto estufava mostrando o firme relevo do pezinho
arqueado.
Na sola se desenhava a curva graciosa da planta sutil, que só nas extremidades beijava o chão, como o silfo que frisa a
superfície do lago com a ponta das asas.
Há um aroma, que só tem uma flor na terra, o aroma da mulher bonita: fragrância voluptuosa que se exala ao mesmo
tempo
do corpo e da alma; perfume inebriante que penetra no coração como o amor volatilizado. A botina estava impregnada
desse
aroma delicioso; o delicado tubo de seda, que se elevava como a corola de um lírio, derramava, como a flor, ondas
suaves.
O mancebo colocara longe de si o charuto para não desvanecer com o fumo os bafejos daquele odor suave. Não havia aí
o
menor laivo de essência artificial preparada pela arte do perfumismo; era a pura exalação de uma cútis acetinada, esse
hálito
de saúde que perspira através da fina e macia tez, e como através das pétalas de uma rosa.
De repente uma idéia perpassou no espírito do moço, que o fez estremecer. Essa botina grácil, em que mal caberia sua
mão
aristocrática, essa botina mais mimosa do que sua luva de pelica, não podia ter um número maior do que o de seus anos,
vinte
e nove!
-- Será de uma menina! murmurou ele um tanto desconsolado.
Examinou novamente a obra-prima, voltou-a de todos os lados, apalpou docemente o salto e o bico, dobrou a orla da
haste,sondou o interior da concha, que servira de regaço ao feiticeiro pezinho. Depois de alguns instantes deste exame
profundo e
minucioso, um sorriso expandiu o semblante de Horácio
-- É de moça, é de mulher! murmurou ele. Aqui estão os sinais evidentes; não podem falhar. A fábula de Édipo é uma
verdade eterna. no enigma da esfinge está realmente o mito da vida. O homem é o animal que de manhã anda sobre
quatro
pés; ao meio-dia sobre dois; à tarde sobre três. Na infância, a criatura, como a planta, conserva-se rasteira, brota, pulula,
mas
conchega-se mais ao solo de que recebe toda a nutrição; as mãos servem-lhe de pés. Depois da juventude, na época da
expansão, a criatura se lança para o espaço, exalta-se; é a árvore que hasteia e procura as nuvens; a planta pede ao céu
os
orvalhos e a luz do sol; a alma pede a crença, a fé, a esperança, de que se geram as flores, que nós chamamos paixões.
Na
velhice, o homem se inclina de novo para a terra, como o tronco carcomido; é o pó, que, depois de revoar no espaço,
deposita-se outra vez no chão. Então o velho precisa do bordão; uma das mãos torna-se pé e calça esse coturno da mais
triste das tragédias humanas, a decrepitude.
Horácio observou de novo atentamente o objeto que tinha entre as mãos.
-- A menina de quinze anos já não é a corça de quatro patas; não está mais na alvorada da vida, na puerícia; também
ainda
não chegou ao meio-dia do qual aproxima-se. Contudo, seu andar conserva ainda aquela atração para a terra; é pesado;
calca o chão com força; tem o quer que seja de sacudido, que revela os impulsos da alma para desprender-se do pó e
elevar-se; assemelha a singradura do batel, que ora se levanta, ora se submerge. Se esta botina fosse de uma menina,
aqui
estariam impressos esses caracteres de sua idade. A sola, em vez de levemente triturada nas extremidades, estaria
estragada;
o salto cambado. É uma observação que todo sapateiro confirmaria: o menino gasta o calçado pela sola, o homem pelo
couro; a razão, o sapateiro a ignora, mas o filósofo a conhece: o menino é o inseto que rasteja, a larva; o homem é o
inseto
que voa, o besouro; aquele anda com o ventre, este com a asa.
Horácio sorriu.
-- Esta botina é de moça; e moça em todo o viço da juventude: a sola apenas roçada junto à ponta, o salto quase intato,
não
estão descrevendo com a maior eloqüência a sutileza do passo ligeiro? Eu sinto, posso dizer eu vejo, esse andar gentil,
que
manifesta a deusa, como disse o poeta; a deusa, a Vênus deste olimpo em que vivemos, a mulher. Só quando toda seiva
se
precipita para o coração, quando germinam os botões que mais tarde abrirão em flor, só nesse momento de assunção é
que a
mulher tem este andar sublime e augusto. É o andar do passarinho que, roçando a relva, sente o impulso das asas; é o
andar
do astro nascente, caminhando para a ascensão; é o andar do anjo que, mesmo tocando a terra, parece prestes a fugir ao
céu; e é, finalmente, a elação d'alma que aspira de Deus os eflúvios do amor, do amor, único ambiente do coração!
Nisto o moço descobriu na fivela do laço da botina alguma coisa que lhe excitou vivo reparo; chegando-se à luz, viu as
voltas
de um fio, que prendeu entre as brancas unhas afiladas, verdadeiras garras de leão da moda. Com alguma paciência
retirou
um longo cabelo castanho e muito crespo.
-- Outra prova de que aliás não carecia! Este cabelo é de mulher; não há menina que possa ter. Quatro palmos, além do
que
se partiu naturalmente! Bem se vê que é uma palmeira frondosa, e não um arbusto! Tem o cabelo castanho e crespo,
duas
coisas lindas sem dúvida, embora minha paixão seja a trança basta e lisa, negra como uma asa de corvo. Esse negrume
dá à
mulher o quer que seja de satânico: lembra que ela também gerou se da terra; não é anjo somente; não é somente filha
do céu.
Eu não posso suportar a mulher-serafim, que parece desdenhar do mundo onde vive, e do pó de que é feita.
Horácio voltou a botina.
-- Mas seja embora castanha, ou mesmo loura, que é uma cor insípida de cabelo! Que me importa isto? Tenho alguma
coisa
com seu cabelo? O que amo nela é o pé: este pé silfo, este pé anjo, que me fascina, que me arrebata, que me
enlouquece!...
Horácio, que até então se contentava com olhar e apalpar a botina, inclinou-se e beijou-a no rosto; mas tímida e
respeitosamente. Não era essa a imagem do pé sedutor, que ele adorava como um ídolo?
-- Mas onde encontrá-lo? como reconhecê-lo? exclamou dolorosamente Horácio, sentindo a realidade da situação.
Nenhum indício que lhe revelasse o nome da mulher a quem pertencia essa gentil botina, ou lhe indicasse ao menos os
traços
de sua passagem A lembrança vaga de libré de um lacaio era o único vestígio que restava, mas com este dificilmente
poderia
descobrir o objeto de sua adoração Há tantos lacaios no Rio de Janeiro; e tantas librés que se confundem! Talvez nunca
mais
encontrasse aquele que procurava; e encontrando, nem o reconhecesse
-- Desgraçado! dizia o leão. Quase nem o olhaste; mas podias tu adivinhar, Horácio, que tesouro deixara cair aquele
bruto?
O mancebo inclinara ao peito a bela cabeça esmorecida; a ventura lhe tinha sorrido de longe, para escarnecer dele, o
leão
mais querido das belezas fluminenses, o Átila do Cassino, o Genserico da Rua do Ouvidor
De repente ergueu-se dum ímpeto:
-- Hei de possuí-lo!... exclamou ele com o tom com que Alexandre se prometeu o império da Ásia.