segunda-feira, 4 de abril de 2011

Lima Barreto


Carta de um Defunto Rico

"Meus caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro n.º 7 ..., da 3.ª quadra,
à direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São
João Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu
severo fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das
montanhas de roda não diminuiu em nada  a imponência da antiguidade da rocha
dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno
vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso espanca... Tenho, apesar do que
se possa supor em contrário, uma grande satisfação; não estou mais preso ao meu
corpo. Ele está no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um
marco, um sinal palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte.
Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas
mórbidos, purificar-me no ar superior e  bebo, como um puro e  divino licor, o fogo
claro que enche os límpidos espaços.
Não tenho as dificultosas tarefas  que, por aí, pela superfície da terra,
atazanam a inteligência de tanta gente.
Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso
imperador do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades
constitucionais para autorizar minha mulher a oferecer ou  não lugares do seu
automóvel a príncipes herdeiros — coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras
de uma democracia; não sou obrigado, para  obter um título nobiliárquico, de uma
problemática monarquia,  a andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas e
pedir a literatos das ante-salas palacianas, que as proclamem raridades de beleza, a
fim de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os ingênuos com
recordações de um passado que não devia ser avivado.
Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas
não têm, por si, em geral,  beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas
almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos
descendentes dos seus primitivos donos.
Demais, elas perdem todo o interesse,  todo o seu valor, tudo o que nelas
possa haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam
retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus
móveis e as costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O
homem e as suas criações precisam,  para refulgir, do seu ambiente próprio,
penetrado, saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as
emanações de sua vitalidade, é com as vibrações misteriosas de sua existência que
as coisas se enchem de beleza.
É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do
personagem que faz a grandeza do drama, não  são os versos, as metáforas, a
linguagem em si, etc., etc. Estando ela ausente, por incapacidade do autor, o drama
não vale nada.
Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores
e cafundós domésticos, bugigangas, para  agradar futuros e problemáticos
imperantes, porque teria que dar  a elas alma, tentativa  em projeto que, além de
inatingível, é supremamente sacrílego. 
De resto, para ser completa essa  reconstrução do passado ou essa visão
dele, não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem
tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados
pelas autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos.
Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente
eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a
digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que
ingerimos...
Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.
Os mortos não perseguem ninguém;  e só podem gozar da beatitude da
superexistência aqueles que  se purificam pelo arrependimento e destroem na sua
alma todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor.
Os que não conseguem isso — ai deles!
Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção
era outra.
O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer
isto sem vaidade, porque o prazer dele,  da sua magnificência, do seu luxo, não é
propriamente meu, mas de  vocês; e não há mal algum que um vivente tenha um
naco de vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da
Academia de Letras.
Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são
feitas por vivos para vivos.
É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem
ser enterrados. Cada um enterra seu pai como pode - é uma sentença popular, cujo
ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos
sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos.
tanto na forma como no fundo.
O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas,
eram lindas. Do Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens
terceiras, das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem
pobres a maior parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão
de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua,
quem não parasse para contemplá-lo, descobrindo-se ritualmente; não havia quem
não perguntasse quem ia ali.
Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma
população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a
última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus
próprios parentes.
Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado,
no fundo das coisas humanas, um vazio absoluto.
Essa convicção me veio com as meditações seguidas que me foram
provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres,
a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos
do que eu.
Adivinhei isto e fiquei a matutar como é que ele gozava de tanta consideração
fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que...
Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te
fez as sabatinas por "tuta-e-meia". e contenta-te, com o que herdaste do teu pai e
com o que tem tua mulher! Se não fizeres... ai de ti! Nem o Carlos nem vocês outros,  espero, encontrarão nesta última
observação matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem
inimizade.
Os vivos me merecem unicamente  piedade; e o que me deu esta situação
deliciosa em que estou, foi ter sido, às vezes, profundamente bom. Atualmente, sou
sempre...
Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela,
que havia de fazer recriminações a meu  filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha
missão, quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento.
Agradeço a vocês o cuidado que tiveram  com o meu enterro; mas, seja-me
permitido, caros parentes e amigos, dizer  a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e
rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Porque vocês não forneceram librés novas
aos cocheiros das caleças, sobretudo,  ao do coche, que estava vestido de tal
maneira andrajosa que causava dó?
Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os
pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficará muito satisfeito. O
brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado uma obra de caridade.
Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de
que estou sempre junto de vocês. É tudo isto do José Boaventura da Silva.
N. B. — Residência, segundo a Santa Casa: Cemitério de São João Batista
da Lagoa; e, segundo a sabedoria universal, em toda a parte. — J. B. S." 
Posso garantir que trasladei esta  carta para aqui, sem omissão de uma
vírgula.