terça-feira, 30 de novembro de 2010
Letras & Linhas: Cora Coralina
Letras & Linhas: Cora Coralina: "Todas as Vidas Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando para o fogo. Benze quebranto. Bota..."
Cora Coralina
Todas as Vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!
Cora Coralina
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Letras & Linhas: Zélia Gattai
Letras & Linhas: Zélia Gattai: "Anarquistas, Graças a Deus “A chácara do seu Henrique não tinha fruta de espécie alguma, mas era encantadora. A casa rústica, construída..."
Zélia Gattai
Anarquistas, Graças a Deus
“A chácara do seu Henrique não tinha fruta de espécie alguma, mas era encantadora. A casa rústica, construída numa pequena elevação, dava sobre um bosque; ao lado, antes de entrar na mata cerrada, havia uma piscina natural, toda de pedras, transbordante de água cristalina provinda de uma nascente...
Era começo de semana e passamos, os dois sozinhos, dias inesquecíveis, deitados em redes sob os arvoredos, banhando-nos na piscina, fugindo ao sufocante calor do tórrido verão gaúcho. Uma empregada nos servia, e, ao meio-dia em ponto, chegava um carro trazendo-nos almoço e jantar e os jornais. Tão próximos da cidade e, no entanto, estávamos em plena selva, longe da civilização...”
Anarquistas, Graças a Deus é o livro de estreia da escritora brasileira Zélia Gattai, publicado em 1979. Nele a autora, filha de imigrantes italianos, traz reminiscências do país na primeira metade do século XX, bem como histórias de sua infância.
Zélia Gattai recebeu pelo livro o Prêmio Paulista de Revelação Literária de 1979.
A Rede Globo produziu uma minissérie de mesmo nome, com direção-geral de Walter Avancini. A produção foi realizada pelo Núcleo da TV Globo em São Paulo, em 1982.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
Letras & Linhas: Jorge Amado
Letras & Linhas: Jorge Amado: "Jubiabá Antônio Balduíno ficava em cima do morro vendo a fila de luzes que era a cidade embaixo. Sons de violão se arrastavam pelo morro m..."
Jorge Amado
Jubiabá
Antônio Balduíno ficava em cima do morro vendo a fila de luzes que era a cidade embaixo. Sons de violão se arrastavam pelo morro mal a luz aparecia [...] vivia metido num camisolão azul sempre sujo de barro, com o qual corria pelas ruas e becos enlameados do morro, brincando com os outros meninos da mesma idade. Apesar dos seus oito anos, Antônio Balduíno já chefiava as quadrilhas de moleques que vagabundeavam pelo Morro do Capa-Negro e morros adjacentes. Porém à noite não havia brinquedo que o arrancasse da contemplação das luzes que se acendiam na cidade tão próxima e tão longínqua.
(...)Antônio Balduíno agora era livre na cidade religiosa da Bahia de Todos os Santos e do pai de santo Jubiabá. Vivia a grande aventura da liberdade. Sua casa era a cidade toda, seu emprego era corrê-la. O filho do morro pobre é hoje o dono da cidade. Cidade religiosa, cidade colonial, cidade negra da Bahia. Igrejas suntuosas bordadas de ouro, casas de azulejos azuis, antigos sobradões onde a miséria habita, ruas e ladeiras calçadas de pedras, fortes velhos, lugares históricos, e o cais, principalmente o cais, tudo pertence ao negro Balduíno. Só ele é o dono da cidade porque só ele a conhece toda, sabe de todos os seus segredos, vagabundeou em todas as suas ruas, se meteu em quanto barulho, em quanto desastre aconteceu na cidade. Ele fiscaliza a vida da cidade que lhe pertence. Esse é o seu emprego. Olha todos os movimentos, conhece todos os valentes da cidade, vai às festas líricas, recebe e embarca os viajantes de todos os navios. [...] come a comida dos restaurantes mais caros, anda nos automóveis mais luxuosos, mora nos mais novos arranha-céus. E pode se mudar a qualquer momento. E como é dono da cidade não paga a comida, nem o automóvel, nem o apartamento.
Publicado no Rio de Janeiro em 1935, gira em torno de Antônio Balduíno e não da personagem-título. O herói, moleque de morro em Salvador, torna-se sucessivamente lutador de boxe, lavrador, artista de circo e operário. Com ele contracenam Jubiabá, pai-de-santo,e conselheiro, e Lindinalva, moça branca por quem se apaixona e que mais tarde reencontra nas piores condições, seduzida e abandonada pelo advogado Barreiras.
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Letras & Linhas: Gregório de Matos
Letras & Linhas: Gregório de Matos: "Soneto A cada canto um grande conselheiro.que nos quer governar cabana, e vinha,não sabem governar sua cozinha,e podem governar o mundo int..."
Gregório de Matos
Soneto
A cada canto um grande conselheiro.
que nos quer governar cabana, e vinha,
não sabem governar sua cozinha,
e podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um frequentado olheiro,
que a vida do vizinho, e da vizinha
pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
para a levar à Praça, e ao Terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
trazidos pelos pés os homens nobres,
posta nas palmas toda a picardia.
Estupendas usuras nos mercados,
todos, os que não furtam, muito pobres,
e eis aqui a cidade da Bahia.
Biografia
Poeta barroco brasileiro, nasceu em Salvador/BA, em 20/12/1623 e morreu em Recife/PE em 1696. Foi contemporâneo do Pe. Antônio Vieira. Amado e odiado, é conhecido por muitos como "Boca do Inferno", em função de suas poesias satíricas, muitas vezes trabalhando o chulo em violentos ataques pessoais. Influenciado pela estética, estilo e sintaxe de Gôngora e Quevedo, é considerado o verdadeiro iniciador da literatura brasileira.
De família abastada (seu pai era proprietário de engenhos), pôde estudar com os jesuítas em Salvador. Em 1650, com 14 anos, abala para Portugal, formando-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1661. É nomeado juiz-de-foro em Alcácer do Sal (Alentejo) em 1663. Em 1672 torna-se procurador de Salvador junto à administração lisboeta.
Volta ao Brasil pouco depois de 1678. Quarentão e viúvo, tenta acomodar-se novamente na sociedade brasileira, tarefa impossível. Apesar de investido em funções religiosas, não perdoa o clero nem o governador-geral (apelidado "Braço de Prata" por causa de sua prótese) com seu sarcasmo. Mulherengo, boêmio, irreverente, iconoclasta e possuidor de um legendário entusiasmo pelas mulatas, pôs muita autoridade civis e religiosas em má situação, ridicularizando-as de forma impiedosa.
Provocando a ira de um parente próximo do governador-geral do Brasil, foi embarcado à força para Angola (1694), pois corria risco de vida. Na África, curte a dor do desterro, espanta-se diante dos animais ferozes, intriga-se com a natureza, dá vazão ao seu racismo e se arrisca à perda da identidade. Sua chegada à Luanda coincide com uma crise econômica e com uma revolta da soldadesca portuguesa local. Gregório interferiu, pacificou o motim, acalmou (ou traiu?) os revoltosos e, como prêmio, voltou para o Brasil, para o Recife, onde terminaria seus dias.
Sua obra poética apresenta duas vertentes: uma satírica (pela qual é mais conhecido) que, não raro, apresenta aspectos eróticos e pornográficos; outra lírica, de fundo religioso e moral.
Ao contrário de Vieira, Gregório não se envolveu com questões magnas, afetas à condução da política em curso: não lhe interessavam os índios, mas as mulatas; não o aborreciam os holandeses, mas os portugueses; não cultivou a política, mas a boêmia; não "fixou a sintaxe vernácula", mas engordou o léxico; não transitou pelas cortes européias, mas vagabundeou pelo Recôncavo.
É uma espécie de poeta maldito, sempre ágil na provocação, mas nem por isso indiferente à paixão humana ou religiosa, à natureza, à reflexão e, dado importante, às virtualidades poéticas duma língua européia recém-transplantada para os trópicos. Ridicularizando políticos e religiosos, zombando da empáfia dos mulatos, assediando freiras e mulatas, ou manejando um vocabulário acessível e popular, o poeta baiano abrasileirou o barroco importado: seus versos são um melting pot poético, espelho fiel de um país que se formava.
Poemas
beija-Flor
Anjo bento
Senhora Dona Bahia
Descrevo que era realmente naquele tempo a cidade da Bahia
Finge que defende a honra da cidade e aponto os vícios
Define sua cidade
A Nossa Senhora da Madre de Deus indo lá o poeta
Ao mesmo assunto e na mesma ocasião
Ao braço do mesmo Menino Jesus quando appareceo
A NSJC com actos de arrependido e suspiros de amor
Ao Sanctissimo Sacramento estando para comungar
A S. Francisco tomando o poeta o habito de terceyro
No dia em que fazia anos
impaciência do poeta
Buscando a cristo
Soneto - Carregado de mim ando no mundo,
Soneto I - À margem de uma fonte, que corria
Soneto II - Na confusão do mais horrendo dia
Soneto III - Ditoso aquele, e bem-aventurado
Soneto IV - Casou-se nesta terra esta e aquele
Soneto V - Bote a sua casaca de veludo,
Soneto VI - A cada canto um grande conselheiro
Triste bahia
Finalmente, o que muitos não devem saber é que Gregório também é considerado antecedente do nosso cancioneiro, pois fazia "versos à lira", apoiando-se em violas de arame para compor solfas e lundus. O lundu, criado nas ruas, tinha ritmo agitado e sincopado, e melodia simples com resquícios modais, sendo basicamente negro. Do lundu vieram o chorinho, o samba, o baião, as marchinhas e os gêneros de caráter ritmado e irreverente.
domingo, 21 de novembro de 2010
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Letras & Linhas: Anne Rice
Letras & Linhas: Anne Rice: "Entrevista Com O Vampiro '... Como já disse, havia muitas coisas das quais Lestat devia ter me avisado. Poderia ter transformado aquela exp..."
Anne Rice
Entrevista Com O Vampiro
"... Como já disse, havia muitas coisas das quais Lestat devia ter me avisado. Poderia ter transformado aquela experiência em algo enrriquecedor, sob vários aspectos. Mas não o fez.
-O que poderia ter feito? - Perguntou o rapaz (o entrevistador). - A que se refere?
- O ato de matar não é um ato comum - Disse o vampiro. - A gente não se satisfaz simplesmente com o sangue do outro.
Sacudiu a cabeça.
- Certamente, trata-se do fato de experimentar uma outra vida, às vezes, de experimentar a perda desta vida através do sangue, lentamente. É a contínua repetição das sensações que tive ao perder minha própria vida, ao sugar o sangue do pulso de Lestat e ao ouvir seu coração rufando junto ao meu.
É a contínua celebração desta experiência pois para os vampiros, esta é a suprema experiência.
Falava com extrema seriedade, como se discutisse com alguém que defendesse outro ponto de vista.
- Acho que Lestat jamais chegou a captar isso. talvez não o conseguisse, não sei. Deixe-me dizer que percebia algumas coisas, mas muito poucas, acredito, dentre as que se pode conhecer. De qualquer modo, não se preocupou em me fazer recordar meus sentimentos no momento em que me agarrei a seu pulso para não deixá-lo partir; nem em escolher um lugar onde pudesse viver a experiência de meu primeiro assassinato com alguma calma e dignidade. Precipitou-se para a luta como se precisássemos fugir o mais rapidamente possível de algo que nos perseguisse. Uma vez tendo pego o escravo, imobilizou-o, agarrando-o pelo pescoço.
-Faça-o - disse. - Agora já não pode mais voltar atrás.
-Cheio de repulsa e enfraquecido pela frustração, obedeci. Ajoelhei-me junto ao homem agachado, que ainda lutava e, colocando ambas as mãos em seus ombros, me aproximei de seu pescoço. Meus dentes mal haviam começado a se transformar, e tive de rasgar sua pele, em lugar de perfurá-la. Mas, uma vez feito a ferida, o sangue jorrou. E quando isto aconteceu, me vi abraçado a ele, bebendo... enquanto todo o resto se desvanecia.
- Lestat, o pântano e os ruídos do acampamento distante nada significavam. Lestat poderia ser mais um inseto, zunindo, piscando e depois se diluindo em sua insignificância. O ato de sugar me hipnotizava; a força do homem cedia sob a tentação de minhas mãos; e então surgiu, novamente, o som do tambor, que era o rufar de seu coração - só que, desta vez, perfeitamente ritmado com as batidas do meu, os dois ressoando em cada fibra de meu ser, até que o rufar começou a ficar cada vez mais lento, até não ser mais do que um ronco suave, que ameaçava continuar eternamente..."
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Letras & Linhas: Bram Stoker - Drácula
Letras & Linhas: Bram Stoker - Drácula: "CAPÍTULO III DIÁRIO DE JONATHAN HARKER(Continuação) Quando verifiquei que estava prisioneiro, uma irritação profunda me tomou conta. Corri..."
Bram Stoker - Drácula
CAPÍTULO III
DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
(Continuação)
Quando verifiquei que estava prisioneiro, uma irritação profunda me tomou conta. Corri pelas escadas, acima e abaixo, tentárido abrir as portas, mas em vão. Quando voltei, depois de algumas horas, tive a impressão de haver enlouquecido, pois minha conduta parecia a de um rato apanhado numa ratoeira. Contudo, quando me veio a convicção de que estava indefeso, sentei-me calmamente e comecei a refletir sobre o melhor que havia a fazer. Ainda estou refletindo e não cheguei a uma conclusão definitiva. Somente de uma coisa tenho certeza: é que não devo permitir que o Conde saiba o que estou pensando. Ele sabe muito bem que estou aprisionado; foi ele próprio que me prendeu e apenas iria me enganar se eu lhe revelasse os fatos. O que tenho a fazer é esconder meus próprios segredos e temores e conservar os olhos bem abertos.
Mal chegara a essa conclusão, ouvi o barulho da grande porta de baixo que se fechava e percebi que o Conde havia entrado. Ele não se dirigiu logo para a biblioteca, e, indo cautelosamente para o meu próprio quarto, encontrei-o arrumando a cama. Era estranho aquilo, mas confirmava a conclusão a que eu chegara: não havia criados naquela casa. Quando mais tarde, através da greta da porta, vi o Conde pondo a mesa da sala de jantar, não tive mais a menor dúvida. Aquilo era uma prova de que só havia uma pessoa no castelo, e, portanto, devia ter sido o próprio Conde o cocheiro da caleça que me trouxe aqui. Foi terrível pensar tal coisa; pois, se assim era, isso quer dizer que o Conde pode dominar os lobos, como dominou, apenas levantando a mão, em silêncio. Por que toda aquela gente de Bistritz e da diligência tinha tido tanto medo por minha causa? Que significava o oferecimento do crucifixo, do alho, da rosa-silvestre e da sorveteira? Bendita seja a boa mulher que amarrou o crucifixo em meu pescoço! Tocá-lo, me dá força e confiança. É estranho que um objeto que eu devia considerar como uma prova de idolatria me proporcione tal sentimento de conforto. Mas pensarei nisso mais tarde. Por enquanto, preciso descobrir tudo que for possível acerca do Conde Drácula, para que eu possa compreender melhor o que está se passando. Esta noite, talvez ele fale a respeito de si mesmo, se eu dirigir a conversa nesse sentido. Contudo, preciso ter cautela, para não despertar suas suspeitas.
Meia-noite — Tive uma longa conversa com o Conde. Fiz-lhe algumas perguntas sobre a história da Transilvânia e ele se entusiasmou com o assunto. Ao falar dos acontecimentos, especialmente das batalhas, parece que os presenciou. Explicou-me depois que tem tanto orgulho com sua casa como consigo próprio. Quando se refere à sua casa, diz sempre “nós”, e fala no plural, como um rei.
Nós os zequelis — disse ele — temos o direito de nos sentirmos orgulhosos, pois, em nossas veias corre o sangue de muitas raças valentes que travaram lutas leoninas para a conquista. Aqui, neste cadinho de raças européias, a tribo de Ugrie trouxe da Islândia o espírito belicoso que lhe deram Thor e Wodin e seus homens se lançaram com tal afã nas praias da Europa e também da África e da Ásia, que os povos pensavam que tinham aparecido os próprios lobisomens. Também para aqui vieram e se encontraram com os hunos, cuja fúria guerreira varrera a terra como uma fogueira, até que os povos moribundos afirmassem ter nas veias o sangue daquelas velhas feiticeiras que, expulsas da Cítia, cruzavam-se com os demônios no deserto. Idiotas! Que demônio ou bruxo foi tão grande quanto Átila, cujo sangue corre em nossas veias? Não é de admirar que sejamos uma raça de conquistadores. Quando redimimos aquela grande vergonha de minha nação, a vergonha de Cassova, quem, senão um homem de minha própria raça atravessou o Danúbio e bateu os turcos em seu próprio terreno? Um Drácula! É não foi esse Drácula que inspirou aquele outro de tua raça, muito depois, que lançou suas forças através do grande rio nas terras dos turcos? Quando foi batido, voltou, e tornou a voltar, muitas vezes, embora tivesse vindo sozinho do sangrento campo de batalha, onde suas tropas estavam sendo massacradas, pois sabia que, no fim ele sozinho acabaria triunfando! Dizem que só pensava em si mesmo. Mas de que valem os camponeses sem um chefe? No entanto os dias de guerra passaram. O sangue é uma coisa muito preciosa, nestes dias de paz vergonhosa. Já estava quase amanhecendo e fomos para a cama.
(Nota: Este diário se parece horrivelmente com o começo das Mil e Uma Noites, pois tudo acaba com o canto do galo — ou se parece com o espectro do pai de Hamlet.)
12 de maio — Comecemos com os fatos — fatos mesquinhos, verificados em livros e algarismos e a respeito dos quais não pode haver dúvida. Ontem à noite, o Conde veio ao meu quarto e fez-me perguntas referentes a assuntos judiciais.
Quis saber, em primeiro lugar, se na Inglaterra é lícito uma pessoa ter dois ou mais procuradores. Respondi-lhe que, quem quisesse, poderia ter até uma dúzia de procuradores, mas que não era aconselhável ter mais de um empenhado na execução de uma transação, pois apenas um podia agir de cada vez, e mudar de procurador sem dúvida seria prejudicial aos interesses da parte.
Ele pareceu compreender perfeitamente e perguntou-me se havia alguma dificuldade prática em ter uma pessoa para atender, por exemplo aos interesses bancários, outra para cuidar de embarques por via marítima, no caso de haver necessidade, em lugar que não fosse o da residência do procurador bancário.
Pedi-lhe para explicar-me melhor e ele disse:
— Vou exemplificar. Nosso amigo comum, Sr. Peter Hawkins, que mora em Exeter, longe de Londres, compra para mim, por intermédio do senhor, uma propriedade em Londres. Agora deixe-me dizer francamente, para que o senhor não ache estranho eu ter contratado os serviços de alguém que mora longe de Londres, que fiz isto porque não desejava que outros interesses locais fossem satisfeitos, a não ser os meus. Assim, preferi ter meus interesses defendidos em Londres por alguém que lá não reside. Agora, suponhamos que eu tenha muitos negócios e deseje, por exemplo, embarcar mercadorias, para Newcastle, Durham, Harwich ou Dover, por exemplo. Não o faria com mais facilidade atravês de consignações para um daqueles portos?
Respondi que sim, embora os procuradores tenham um sistema de agências.
— Mas — perguntou ele — eu teria liberdade de dirigir eu próprio as atividades, não é verdade?
— É claro — respondi. — Tal coisa é feita, freqüentemente, por homens de negócio, que não desejam que o conjunto de seus negócios seja conhecido por uma só pessoa.
— Ótimo! — disse ele, passando em seguida a fazer perguntas sobre os meios de fazer consignações e sobre os meios de se livrar de toda a sorte de dificuldades que pudessem surgir, e ser evitadas de antemão. Expliquei-lhe tudo isso, o melhor que pude, e ele me deu a impressão de que seria um ótimo procurador.
— O senhor escreveu, depois de sua primeira carta, ao nosso amigo, Sr. Peter Hawkins, ou a qualquer outra pessoa? — perguntou, depois.
Foi com certa irritação que respondi que não, pois não tivera ainda oportunidade de enviar cartas a quem quer que fosse.
— Pois então, escreva agora mais jovem amigo — disse ele. — Escreva ao seu amigo e a qualquer outra pessoa e diga, se quiser, que vai ficar comigo durante um mês.
— Quer que eu fique tanto tempo? — perguntei, sentindo um frio no coração.
— Desejo muito, e não concordarei com uma recusa. Quando seu patrão concordou em enviar uma pessoa em seu lugar, ficou combinado que seriam levados em consideração meus interesses.
Tive que concordar; afinal de contas, estava ali representando os interesses do Sr. Hawkins, e não os meus. Além disso, enquanto falava, o Conde Drácula dava a entender, pelo olhar, que eu era seu prisioneiro e tinha de fazer o que ele quisesse.
— Peço-lhe, meu amigo — prosseguiu — que só fale de negócios em suas cartas. Sem dúvida, seus amigos ficarão satisfeitos sabendo que o senhor vai bem e quando pretende voltar, não é mesmo?
Enquanto falava, apresentou-me três folhas de papel e três envelopes, finíssimos, e compreendi, pelo olhar do Conde, que estava insinuando que eu tivesse o máximo cuidado com o que escrevesse, pois ele poderia facilmente ler as cartas. Resolvi, assim, escrever apenas bilhetes formais, mas escrever em segredo, uma carta completa para Mr. Hawkins e também para Afina, pois, para ela, poderia taquigrafar, de maneira que o Conde não pudesse ler. Depois de escrever as duas cartas, sentei-me lendo um livro, enquanto o Conde tomava várias notas, consultando alguns livros que se encontravam em cima da mesa. Depois, pegou as duas cartas e colocou-as junto com as suas e saiu, deixando-as na mesa, viradas para baixo. Olhei os endereços. Uma estava endereçada para Samuel F. Billington, N. O 7, The Crescent, Whitby, outra para Herr Leutner, em Viena, a terceira para Coutts & Co., em Londres, e a quarta para Herren Klopstock & Billreuth, banqueiros, Budapeste. A segunda e a quarta estavam abertas. Eu já ia olhá-las, quando a maçaneta da porta se moveu. Tornei para a minha cadeira, só tendo tempo de deixar as cartas como estavam, antes que o Conde entrasse, trazendo outra na mão. Pegou as cartas que estavam em cima da mesa, selou-as e disse-me:
— Espero que me desculpe, mas tenho muita coisa que fazer esta noite. Encontrará todas as coisas que desejar, assim espero.
Chegando à porta, voltou-se para dizer:
— Quero avisá-lo, meu jovem amigo, que, se sair destes aposentos, não deve, de modo algum, dormir em outra parte do castelo. É muito velho e as pessoas que nele não souberem dormir terão maus sonhos. Se tiver sono, volte para seu próprio quarto, ou para estes aposentos, pois aqui ficará em segurança. Mas se não tiver cuidado...
Compreendi a insinuação perfeitamente; mas duvidava que pudesse haver pesadelo pior que o mistério que me rodeava.
Mais tarde. — Confirmo o que disse. Não receio dormir em qualquer lugar onde ele não esteja. Coloquei o crucifixo na cabeceira da minha cama, imaginando afastar os pesadelos.
Quando o Conde se retirou, fui para meu quarto. Algum tempo depois, como tudo estivesse em silêncio, saí e dirigi-me à escada de pedra, de onde podia olhar para o lado do sul. Dava-me certa sensação de liberdade olhar para a vastidão do lado de fora, embora me fosse inacessível, em comparação com a estreiteza e escuridão do pátio. Ao debruçar-me à janela, notei alguma coisa que se movia no andar de baixo, à minha esquerda, onde deviam se abrir, segundo meus cálculos, pela ordem dos assentos, as janelas do quarto do Conde. Afastei-me e olhei, atentamente.
O que chamara minha atenção era a cabeça do Conde, saindo para fora da janela. Não vi o rosto, mas distingui-o pelo pescoço e pelo movimento de suas costas e braços. De qualquer maneira, não podia me enganar com aquelas mãos, que tivera tantas oportunidades de examinar. A principio, eu estava interessado e um tanto distraído, pois qualquer coisa serve para distrair um prisioneiro. Mas meus sentimentos transformaram-se em repulsa quando vi todo o corpo do Conde projetar-se pela janela, vagarosamente, e sair se arrastando pela parede, de cabeça para baixo, com o manto agitando-se ao vento, como asas enormes. A princípio, não pude acreditar no que estava vendo. Pensei que fosse uma ilusão causada pelo luar. Mas não podia haver dúvida. Os dedos dos pés e das mãos se agarravam as pedras da parede, e o Conde andava velozmente, de cabeça para baixo, como uma lagartixa.
Que homem será este, ou que criatura semelhante a um homem? Receio que o pavor deste horrível lugar me enlouqueça e que não haja meio de escapar daqui. Estou tão horrorizado que não ouso pensar em...
15 de maio — Outra vez vi o Conde sair pela parede abaixo, como uma lagartixa, e desaparecer, a uns cem pés abaixo, em alguma janela ou buraco. Vi que saíra do castelo e resolvi aproveitar a oportunidade para procurar ver mais do que tinha me atrevido a ver até agora. Voltei ao quarto e, pegando uma lâmpada, experimentei todas as portas. Estavam trancadas, como esperava, e as fechaduras eram relativamente novas; mas desci pela escada de pedra, chegando ao vestíbulo por onde entrara.
Verifiquei que podia abrir facilmente os ferrolhos da porta, e o cadeado, mas a porta estava trancada e a chave desaparecera. A chave devia estar no quarto do Conde; resolvi ver se encontrava a porta do seu quarto aberta para me apoderar da chave e fugir. Continuei a examinar as várias escadas e corredores e tentar abrir as portas que davam para os mesmos. Havia uns dois aposentos abertos, mas nada havia demais neles, a não ser a mobília, muito velha e mofada.
Afinal, encontrei uma porta, no alto da escada, que se abriu quando a empurrei com bastante força. Encontrei-me, então, numa ala do castelo mais à direita que os aposentos que eu tinha visto e um andar abaixo dos mesmos. O castelo é construído num elevado rochedo e inexpugnável por três lados. Para o este, fica um grande vale, que dá para as montanhas. Esta era, evidentemente, a parte do castelo ocupada pelas damas nos velhos tempos, pois a mobília era mais confortável que nos aposentos que eu vira até então. Aqui estou escrevendo, numa mesinha de carvalho, onde, possivelmente, nos velhos tempos, alguma jovem se sentou, enrubescida, para escrever cartas de amor.
Mais tarde: madrugada de 16 de maio — Deus conserve minha saúde, que é tudo que me resta. Enquanto viver aqui minha única esperança é não enlouquecer. Estou começando a ver sob nova luz certas coisas que tinham me intrigado.
A misteriosa advertência do Conde me atemorizou quando foi feita e me atemoriza hoje mais ainda, pois, para o futuro, ele terá um terrível domínio sobre mim.
Depois que escrevi meu diário e que, felizmente, tinha colocado no bolso o caderno e a pena, senti sono. Lembrei-me da advertência do Conde, mas senti certo prazer em desobedecê-la. O luar me acalentava e a vastidão avistada através da janela dava uma sensação de liberdade que me exaltava. Resolvi não voltar naquela noite aos aposentos sombrios. Puxei um grande divã para um canto, de onde podia me deleitar com a bela vista para b sul e para o leste. Creio que adormeci; tenho a impressão de ter adormecido, mas tudo que, se seguiu foi tão real que não posso acreditar que estivesse dormindo.
Não estava só. O aposento não se modificara em coisa alguma e eu podia ver, no próprio chão, iluminado pelo luar, as marcas que meus pés tinham deixado na poeira. Em frente de mim, estavam três jovens mulheres, damas da nobreza pelas maneiras e modo de trajar. Pensei que era um sonho, pois, embora o luar estivesse por trás delas, suas sombras não apareciam no chão. Aproximaram-se de mim, olharam-me durante algum tempo e sussurraram algumas palavras umas para as outras. Duas eram morenas, com narizes aquilinos, como o do Conde, e grandes olhos escuros e vivos, que pareciam quase vermelhos, em contraste com o pálido luar. A outra era loura e olhos cor de safira. Tive a impressão de conhecer aquele rosto, mas não pude lembrar-me de onde e quando. Todas três tinham dentes branquíssimos, que brilhavam como pérolas, entre o rubi voluptuoso dos lábios. A sensação que provocavam em mim era estranha, ao mesmo tempo de desejo e de pavor. Sentia uma vontade ardente que elas me beijassem com aqueles lábios vermelhos. Não devia escrever isto, pois algum dia Mina vai ler estas notas e sentirá ciúmes; mas é a verdade. Depois de sussurrarem entre si, as três mulheres riram, uma risada límpida, musical, mas tão forte que seria impossível ter saído de lábios humanos. A moça loura sacudiu a cabeça, sensualmente, e as duas outras a estimularam. Uma delas disse:
— Vai. Você primeiro e nós depois. Você tem o direito de começar.
— As jovens são mais fortes — acrescentou a outra. — Há beijos para nós todas.
Fiquei imóvel, olhando entre as pálpebras quase descidas, na agonia de uma deliciosa expectativa. A moça loura avançou, debruçou-se sobre mim e pude sentir o contato suave de seus lábios na sensível pele do meu pescoço, e a dureza de dois dentes aguçados ali pousados. Fechei os olhos, num êxtase langoroso, e esperei, com o coração aos pulos.
Mas, nesse instante, uma outra sensação. Tive consciência da presença do Conde e percebi que estava furioso. Abrindo os olhos, involuntariamente, vi sua rude mão agarrada ao pescoço da moça loura e seu rosto demonstrava uma fúria que nunca imaginei, mesmo em demônios. Sem exageros, seus olhos chamejavam.
— Como se atreve a tocá-lo? — disse ele. — Como se atreveu a pôr os olhos sobre ele, quando proibi? Para trás, vocês todas! Este homem me pertence! Cuidado com a maneira de tratá-lo, ou terão de se haver comigo!
— Você jamais amou! — exclamou a moça loura, com uma gargalhada.
As outras a acompanharam, e gargalharam com tanta força que quase desmaiei ao ouvi-las. Depois o Conde virou-se, após olhar meu rosto atentamente, e disse, em voz baixa:
— Eu também sou capaz de amar. Vocês mesmas podem dizer isto, pelo passado. Agora, prometo que, quando não precisar mais dele, vocês poderão beijá-lo à vontade. Agora, vão-se embora!
— Não temos nada para esta noite? — perguntou uma das mulheres, com uma gargalhada, e apontando para o saco que o conde atirara no meio da sala e que se movia, como se houvesse um ser vivo lá dentro.
O Conde fez um sinal com a cabeça. Uma das mulheres precipitou-se sobre o saco e o abriu. Se meus ouvidos não me enganaram, ouvi o arquejar de uma criança. Fechei os olhos, horrorizado e, quando as mulheres tinham desaparecido, e, com elas, o horrível saco. Perdi os sentidos.
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Letras & Linhas: Bram Stoker
Letras & Linhas: Bram Stoker: "Drácula - Bram Stoker CAPÍTULO II DIÁRIO DE JONATHAN HARKER(Continuação) 5 de maio — Eu devia ter dormido, pois, se estivesse inteiramente ..."
Bram Stoker
Drácula - Bram Stoker
CAPÍTULO II
DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
(Continuação)
5 de maio — Eu devia ter dormido, pois, se estivesse inteiramente acordado, tetia notado a aproximação de um lugar tão notável. Na escuridão, o pátio parecia muito grande e vários caminhos escuros davam para ele, através de grandes arcos arredondados, que talvez parecessem maiores do que eram na realidade.
Quando a caleça parou, o cocheiro me ajudou a descer. De novo não pude deixar de notar sua força prodigiosa. Em seguida, ele tirou minha bagagem, que colocou no chão ao meu lado, diante de uma grande e velha porta de ferro, que se abria na parede de pedra. Subindo de novo para a caleça, o cocheiro sacudiu as rédeas, os animais partiram e o carro desapareceu numa das passagens escuras.
Fiquei em silêncio, onde estava, sem saber o que fazer. Não havia sinal de campainha, ou de aldrava e não parecia provável que minha voz penetrasse aquelas paredes e janelas escuras. Tive a impressão de ter esperado um tempo infinito. Em que lugar viera me meter, e com que espécie de gente? Seria essa uma aventura banal na vida de um mero ajudante de procurador, que tinha de explicar a um estrangeiro a compra de uma propriedade em Londres? Ajudante de procurador! Mina não gostaria disso. Procurador, pois pouco antes de sair de Londres eu soubera que fora feliz no concurso que fizera. Era, agora, um procurador.
Tive de me beliscar e esfregar os olhos, para ver se estava acordado. Aquilo tudo estava me parecendo um pesadelo horrível e esperava acordar, de repente, em minha casa. Mas meus olhos não me iludiam. Estava realmente acordado, nos Cárpatos. A única coisa que me restava era ter paciência e esperar o amanhecer.
Justamente quando chegara a essa conclusão, ouvi, por trás da porta, passos pesados que se aproximavam. Uma chave girou na fechadura, com um rangido característico do desuso, e a pesada porta se abriu. No lado de dentro, estava de pé um velho alto, sem barba e com um comprido bigode branco, vestido de preto da cabeça aos pés. Trazia na mão uma velha lâmpada de prata, cuja chama lançava nas paredes sombras enormes. O velho fez-me sinal para entrar, com a mão direita, num gesto cortês, dizendo, em excelente inglês, mas com uma entonação estranha:
— Seja bem-vindo à minha casa! Entre por sua livre e espontânea vontade!
Não fez menção de avançar para vir ao meu encontro, deixando-se ficar imóvel como uma estátua, como se seu gesto de boas-vindas o tivesse petrificado. Logo que entrei, contudo, ele adiantou-se, impulsivamente, e apertou minha mão com uma força que me fez pestanejar, para o que também contribuiu o fato de sua mão ser fria como gelo — mais parecendo a mão de um morto que a de um vivo.
— Seja bem-vindo à minha casa — disse, de novo. — Entre à vontade, saia são e salvo e deixe aqui um pouco da felicidade que traz!
A força com que me apertou a mão era tão semelhante à que eu havia notado no cocheiro, cujo rosto não vira, que, por um momento, imaginei se os dois não seriam a mesma pessoa. Para me assegurar, perguntei:
— O Conde Drácula?
— Sou Drácula — respondeu ele, com uma mesura cortês. — E desejo-lhe boas-vindas à minha casa, Sr. Harker. Entre; a noite está fria e o senhor deve estar precisando comer e descansar.
Enquanto falava, colocou a lâmpada num nicho da parede e, antes que eu pudesse impedir, pegou minha bagagem. Protestei, mas ele insistiu:
— O senhor é meu hóspede. Já é tarde e meus criados não estão por aí. Deixe que eu mesmo cuide do senhor.
Fez questão de levar; ao longo de um corredor e de uma escada de pedra, após a qual seguiu por outro corredor de pedra, que terminava numa porta. No fim desse corredor, o Conde abriu uma pesada porta é regozijei-me, ao ver uma sala bem iluminada, com uma mesa posta para a ceia e uma lareira onde crepitava bom fogo.
O Conde depositou minha bagagem no chão, fechou a porta e, atravessando a sala, abriu outra porta, que dava para um pequeno quarto octogonal, iluminado por uma simples lâmpada e que parecia não ter janela alguma. Atravessando-o, abriu outra porta e me fez sinal para entrar. A vista era agradável: tratava-se de um grande quarto de dormir bem iluminado e aquecido por outra lareira. O próprio Conde colocou ali minha bagagem e disse, antes de fechar a porta:
— O senhor há de querer, depois da viagem, fazer sua toalete. Espero que encontre tudo que deseja. Quando terminar, pode passar para a outra sala, onde encontrará a ceia preparada.
A luz e o calor e a cortês recepção do Conde tinham dissipado minhas dúvidas e receios. Voltando ao meu estado normal, verifiquei que estava faminto; assim, depois de fazer uma toalete rápida, entrei na outra sala.
Encontrei a ceia já posta. Meu anfitrião, que estava de pé junto à lareira, mostrou a mesa, num gesto cortês, dizendo:
— Peço-lhe que sente e ceie à vontade. Espero que me desculpe por não lhe fazer companhia; mas já jantei e não costumo cear.
Entreguei-lhe a carta lacrada que o Sr. Hawkins me confiara. Ele a abriu e leu-a, gravemente, depois, sorrindo amavelmente, entregou-ma para que eu a lesse. Pelo menos um trecho dela deu-me grande prazer:
“Lamento que um ataque de gota, moléstia que me ataca com freqüência, me impeça, em absoluto, qualquer viagem num futuro próximo; mas tenho o prazer de comunicar que posso enviar um substituto plenamente capaz, no qual deposito absoluta confiança. É um jovem enérgico e talentoso, à sua maneira, e muito leal. É discreto e pouco falador e se fez homem trabalhando comigo. Estará à sua disposição, para ajudá-lo quando senhor desejar e receberá suas instruções respeito de todos os assuntos.”
O próprio Conde tirou a tampa de uma travessa e eu ataquei, imediatamente, um excelente frango assado, que, com queijo, salada e uma garrafa de velho Tokay, do qual tomei dois copos, constituiu minha ceia. Enquanto eu comia, o Conde me fez muitas perguntas sobre a viagem e contei-lhe todos os pormenores.
Quando acabei de cear, aquiescendo ao desejo de meu anfitrião, sentei-me numa cadeira junto do fogo e pus-me a fumar um charuto que ele me ofereceu, desculpando-se, ao mesmo tempo, pelo fato de não fumar. Tive, então, oportunidade de observá-lo e achei sua fisionomia altamente expressiva.
Tem nariz aquilino, narinas dilatadas, testa ampla e bela cabeleira, já rareando nas têmporas, mas muito abundante no resto da cabeça. Suas sobrancelhas são espessas, quase se encontrando sobre o nariz. A boca, pelo que pude ver, sob o bigode espesso, é firme e dura, e os dentes são particularmente aguçados e brancos, projetando-se entre os lábios, cuja cor demonstra extraordinária vitalidade para sua idade. Quanto ao resto, as orelhas são pálidas e muito pontudas, o queixo largo e forte e as faces firmes, embora finas. O que mais impressionava, no entanto, era sua extraordinária palidez.
Até então, eu tinha notado as costas, de suas mãos, que tinham me parecido brancas e finas; mas, vendo-as mais de perto, pude notar que eram bem grosseiras, com dedos fores. Por mais estranho que pareça, as palmas das mãos tinham cabelos. As unhas eram compridas e finas, terminando em ponta. Como o Conde se curvasse sobre mim, encostando-me as mãos, não pude conter um tremor. Talvez tenha sido por causa do seu mau hálito, mas o fato é que me dominou uma horrível sensação de náusea, que não pude esconder. O Conde notou-a, evidentemente, e recuou; e com uma espécie de sorriso que deixava ver melhor seus dentes salientes, sentou-se, de novo, do outro lado da lareira. Ficamos em silêncio durante algum tempo. Do vale, vinham os uivos de muitos lobos.
— Ouça-os... os filhos da noite — disse o Conde, com os olhos brilhando. — Que música fazem!
E, notando, sem dúvida, minha estranheza, acrescentou:
— Os senhores, habitantes da cidade, não podem compreender os sentimentos de um caçador.
Pôs-se de pé, depois acrescentou:
— Mas o senhor deve estar cansado. Seu quarto já está arrumado e amanhã poderá dormir até a hora que quiser. Tenho de me ausentar durante toda a tarde. Durma bem, portanto, e tenha sonhos agradáveis!
E, com uma mesura cortês, abriu-me a porta do aposento octogonal e entrei em meu quarto.
Perturba-me um mar de contradições. Duvido; tenho medo; penso coisas estranhas que não me atrevo a confessar a mim mesmo. Deus que me proteja, ao menos para o bem daqueles que me são caros!
7 de maio — Descansei bastante nestas últimas vinte e quatro horas. Dormi até tarde e ninguém me acordou. Depois vesti-me, dirigi-me à sala onde ceara e encontrei uma refeição fria e café ainda quente, pois a cafeteira estava colocada no fogão. Em cima da mesa, havia um cartão, que dizia:
Tive de me ausentar por algum tempo.
Não espere por mim.
D.
Terminada a refeição, procurei a campainha, a fim de chamar os criados para tirar a mesa, mas não encontrei campainha alguma. Havia, naquela casa, algumas deficiências esquisitas, em contradição com as provas de riqueza que a cercavam. O serviço de mesa era de ouro e tão bem trabalhado que devia ter um imenso valor. Também as cortinas e tapeçarias eram valiosíssimas, mas estavam velhas e mofadas. Em nenhum dos aposentos, nem mesmo no meu toucador, havia um espelho e tive de me valer do espelhinho de barbear que trouxera na minha mala para me barbear ou pentear os cabelos. Ainda não tinha visto um criado ou ouvido qualquer ruído no castelo, a não ser o uivo dos lobos. Algum tempo depois, acabada a refeição, procurei alguma coisa para ler, pois não queria andar pelo castelo antes de pedir licença ao Conde. Não havia no aposento livro, jornal ou mesmo material para escrever; abri a porta do quarto e encontrei uma espécie de biblioteca.
Na biblioteca, encontrei, satisfeito, muitos livros ingleses. No centro havia uma mesa repleta de revistas e jornais londrinos, nenhum deles, contudo, de data recente. Os livros eram sobre assuntos os mais variados e havia até o Guia de Londres.
Enquanto estava examinando os livros, a porta se abriu e o Conde entrou. Saudou-me, cordialmente, e acrescentou:
— Estou satisfeito que tenha achado o caminho para aqui pois tenho certeza de que há aqui muita coisa que o interessará. Estes companheiros — disse, apontando pára o livros — têm sido bons amigos para mim e, há alguns anos, desde que tive a idéia de ir para Londres me têm dado muitas horas de prazer. Através deles, aprendi a conhecer sua grande Inglaterra; e conhecê-la é amá-la. Estou ansioso para ir para as ruas repletas de gente de Londres, ver-me no meio do turbilhão da humanidade, compartilhar de sua vida, suas transformações, sua morte. Mas, infelizmente, só conheço seu idioma através dos livros. Quero aprender a falá-lo com o senhor.
— Mas o senhor sabe e fala o inglês perfeitamente, Conde! — disse eu.
— Agradeço, meu amigo, sua apreciação lisonjeira, mas ainda me falta muita coisa.
— Na verdade, o senhor fala o inglês magnificamente.
— Não — respondeu ele. — Sei que, se fosse para Londres, ninguém ali me tomaria por estrangeiro. Isso não é bastante para mim. Aqui sou nobre; os plebeus me conhecem e sou um senhor. Mas um estranho numa terra estranha não é ninguém. Ficarei contente de ser como os outros de maneira que, quando eu falar, ninguém pare para comentar: “É um estrangeiro”. Tenho sido senhor tanto tempo, continuaria ainda a ser senhor, ou, pelo menos, ninguém seria meu senhor. O senhor não veio aqui somente como agente de meu amigo Peter Hawkins, de Exeter, para conversar comigo sobre minha nova propriedade em Londres. Espero que fique comigo algum tempo, para que, conversando com o senhor, eu possa adquirir o sotaque inglês, corrigindo-me mesmo os pequenos erros. Peço desculpas por ter estado fora tanto tempo; mas sei que perdoará quem tem tantos negócios importantes para tratar.
Naturalmente, concordei e pedi-lhe licença para entrar à vontade naquele aposento.
— O senhor pode ir onde quiser no castelo, exceto naturalmente onde as portas estiverem fechadas a chave — respondeu ele. — Não pode se esquecer de que estamos na Transilvânia, onde os costumes são diferentes dos da Inglaterra e o senhor aqui poderá ver muitas coisas diferentes.
Era evidente que estava disposto a conversar e fiz-lhe muitas perguntas relativas a fatos que já tinham acontecido comigo ou que pudera perceber. Às vezes, ele se afastava do assunto, fingindo não compreender; mas, em geral, respondeu com muita franqueza. Tornei-me mais audacioso e perguntei-lhe o que significavam as coisas estranhas que vira na véspera, como, por exemplo, o fato do cocheiro ter se dirigido aos lugares onde apareciam as chamas azuladas. — Segundo dizem — respondeu ele — na véspera do dia de São Jorge aparece uma chama azulada nos lugares em que está enterrado um tesouro. Não há dúvida de que existem muitos tesouros enterrados nesta região, pois seu solo foi disputado, durante muitos séculos, pelos valáquios, saxões e turcos. Há poucos palmos desta terra que não tenha sido regado com o sangue dos patriotas ou dos invasores. Quando os austríacos e húngaros invadiram o pais, os patriotas os enfrentaram nas montanhas. Quando o invasor triunfou, pouca coisa encontrou, pois o que havia foi escondido no solo.
— Mas esses tesouros terão ficado tanto tempo escondidos, quando era tão fácil procurá-los? — perguntei.
O Conde sorriu, deixando à mostra os dentes compridos, pontudos.
— Os camponeses são medrosos — respondeu. — Essas chamas só aparecendo; numa noite e, nessa noite, ninguém desta região tem coragem de sair de casa. Mas vamos falar sobre Londres e minha futura residência.
Pedindo desculpas pelo meu descuido, dirigi-me ao quarto, a fim de tirar os documentos de minha mala. Enquanto os estava arrumando, ouvi barulho de porcelana e prata no outro aposento e, quando voltei, notei que a mesa já fora tirada e que a lâmpada não estava acesa, pois escurecera de todo.
O Conde, estendido no sofá, estava lendo nada mais nada menos que o Guia Bradshaw da Inglaterra.
Quando entrei, ele tirou da mesa os livros e papéis e começamos a discutir planos, dados e algarismos de todo o tipo. Ele estava interessado por tudo e fez-me uma infinidade de perguntas sobre o lugar e seus arredores. Evidentemente estudara muito o assunto, pois estava mais bem informado do que eu mesmo. Como tivesse salientado tal fato, ele retrucou:
— Não acha natural que assim seja? Quando eu estiver lá, meu amigo Jonathan Harker não estará mais ao meu lado, podendo prestar-me todas as informações de que eu necessitar, pois, sem dúvida, estará em Exeter, a milhas de distância provavelmente trabalhando com documentos jurídicos, ao lado de meu outro amigo, Peter Hawkins.
Tratamos, então, dos detalhes da aquisição da propriedade de Purfleet. Depois que eu dera ao Conde as explicações e de ele ter assinado os papéis necessários, e de haver escrito uma carta para a remessa dos documentos ao Sr. Hawkins, indagou como foi que eu descobrira a propriedade. Li, então, para ele, as notas que eu tomara então e que reproduzo aqui:
“Em Purfleet, num caminho transversal, descobri uma propriedade que parecia adequada, e onde havia um cartaz estragado anunciando que a mesma estava à venda. É cercada por um muro alto de pedras, que há muitos anos não é reparado. Os portões são de carvalho e ferro, roído pela ferrugem.
“A propriedade é chamada Carfax, sem dúvida corruptela de Quatro Faces, pois a casa tem quatro fachadas, que dão para os pontos cardeais. A propriedade deve ter uns vinte acres, cercados inteiramente pelo muro supra-mencionado. Há muitas árvores que tornam o lugar sombrio, e uma capela nos fundos. Existem poucas casas nas proximidades, sendo uma delas muito grande, ampliada há pouco tempo e transformada em hospício. Não é visível, no entanto, dos terrenos da propriedade.”
Quando terminei, o Conde disse:
— Sinto-me satisfeito de saber que se trata de uma casa grande e velha. Pertenço a uma velha família e seria horrível, pra mim, ter que morar numa casa nova. Também sinto-me satisfeito por saber que possui uma capela. Nós, os nobres transilvanos, achamos que nossos ossos não devem jazer entre os mortos plebeus. Não estou procurando alegria. Já não sou jovem, e meu coração, depois de acostumado com a morte, durante tantos anos, não está afeito à juventude.
Tive a impressão, contudo, de que sua fisionomia não estava muito de acordo com as palavras que dizia, ou melhor, que suas expressões davam ao sorriso algo de malicioso e amargo.
Logo depois, pediu licença e retirou-se, pedindo-me para arrumar todos os papéis. Comecei, então, a examinar os livros e, folheando um atlas, este se abriu, como que por acaso, num mapa da Inglaterra. Debruçando-me sobre ele, vi que havia três localidades, com um pequeno círculo feito a tinta. Notet que uma delas era a leste de Londres, precariamente onde ficava a nova propriedade do Conoe; as duas outras eram em Exeter e Whitby na costa de Yorkshire.
Passara-se quase uma hora, quando o Conde voltou.
— Sempre metido com os livros! — disse ele. — Muito bem! Mas não deve trabalhar demais. Venha. Fui informado de que a ceia está pronta.
Levou-me ao aposento vizinho, onde, de fato, a mesa estava posta. Mais uma vez, o Conde desculpou-se por não me fazer companhia, pois tinha jantado quando estivera fora de casa. Contudo, conversou comigo, enquanto eu comia, como na véspera. Depois da ceia, fumei, como na noite anterior, e o Conde ficou junto de mim, conversando e fazendo-me perguntas, sobre os mais variados assuntos. Eu estava sem sono, pois o da noite anterior me fortificara. Mas não pude deixar de sentir esse arrepio que nos costuma vir quando a madrugada se aproxima. De repente, ouvimos o canto de um galo, que cortou estridente o ar calmo da madrugada. O Conde ergueu-se, de um pulo.
— Como! — Exclamou. — Já é madrugada de novo! Não devia tê-lo feito ficar acordado até estas horas. O senhor deve tornar menos interessante sua conversa sobre minha nova pátria, a Inglaterra, para que eu não me esqueça de que o tempo voa.
E, com uma mesura cortês, retirou-se.
Fui para o meu quarto e abri as cortinas, mas havia pouca coisa para ver; a janela dava para o pátio e a única coisa que vi foi o céu cinzento. Assim, tornei a fechar as cortinas e tratei de tomar estas notas no meu diário.
Abraham "Bram" Stoker (Clontarf, 8 de Novembro de 1847 — Londres, 20 de Abril de 1912) foi um escritor irlandês bastante conhecido por ter sido o autor de Drácula, a principal obra no desenvolvimento do mito literário moderno do vampiro. Sempre estudando em Dublin, escreveu seu primeiro ensaio aos 16 anos e, em 1875 recebeu seu mestrado. Conseguiu se tornar crítico de teatro, sem remuneração, no jornal Dublin Eventing Mail.
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