quarta-feira, 30 de março de 2011

John Boyne

694px-John_Boyne_in_Dublin
O Menino do Pijama Listrado
Bruno tem nove anos e não sabe nada sobre o Holocausto e a Solução Final contra os judeus. Também não faz ideia de que seu país está em guerra com boa parte da Europa, e muito menos de que sua família está envolvida no conflito. Na verdade, Bruno sabe apenas que foi obrigado a abandonar a espaçosa casa em que vivia em Berlim e mudar-se para uma região desolada, onde ele não tem ninguém para brincar nem nada para fazer. Da janela do quarto, Bruno pode ver uma cerca, e, para além dela, centenas de pessoas de pijama, que sempre o deixam com um frio na barriga. Em uma de suas andanças Bruno conhece Shmuel, um garoto do outro lado da cerca que curiosamente nasceu no mesmo dia que ele. Conforme a amizade dos dois se intensifica, Bruno vai aos poucos tentando elucidar o mistério que ronda as atividades de seu pai. 'O menino do pijama listrado' é uma fábula sobre amizade em tempos de guerra e sobre o que acontece quando a inocência é colocada diante de um monstro terrível e inimaginável.
 

Trecho de um diálogo entre Bruno e a criada, Maria.
(…)
“Bem”, disse Bruno, escolhendo cuidadosamente as palavras para não dizer algo que não deveria, “Lembra-se de que pouco tempo depois de virmos para cá eu fiz um balanço no carvalho e caí e machuquei o joelho?”
“Sim”, disse Maria. “Não está doendo de novo, está?”
“Não, não é isso”, disse Bruno. “Mas, quando eu me machuquei, Pavel era o único adulto por perto e ele me trouxe para casa e limpou o corte e o lavou e passou nele o unguento verde, que doeu, mas acho que ajudou a sarar, e depois fez um curativo sobre o ferimento.”
“É o que qualquer pessoa faria por alguém que se machucou”, disse Maria.
“Eu sei”, prosseguiu ele. “Só que naquela ocasião ele me disse que na verdade não era um servente.”
(…)
“Disse que era médico”, respondeu Bruno. “O que me pareceu muito estranho. Ele não é médico, é?”
(…)
“Pavel não é mais um médico, Bruno”, disse Maria, em voz baixa. “Mas ele foi. Em outra vida. Antes de vir para cá.”
(…)

terça-feira, 29 de março de 2011

Letras & Linhas: História da Arte

Letras & Linhas: História da Arte: " A palavra “arte” teve muitos significados durante a história. Sempre houve uma pequena discussão, pois alguns achavam que a arte era..."

segunda-feira, 28 de março de 2011

Letras & Linhas: Biografias

Letras & Linhas: Biografias: "John BoyneJohn Boyne (30 de abril de 1971) é um romancista Irlandês. Ensinou língua inglesa no Trinity College, e Literatura Criativa n..."

sábado, 26 de março de 2011

Fernando Pessoa


Vendaval

Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio
Que o meu coração!
Indômita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
Não são tão deixados do alegre e do humano
Como a alma que há em mim!
Mas dura planície, praia atra em fereza,
Só têm a tristeza que a gente lhes vê
E nisto que em mim é vácuo e tristeza
É o visto o que vê.
Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles — teu pulso divida
Minh'alma do mundo!
Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar -
Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia
De eu ter que pensar!
Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver -
Porque é que não entras no meu penssamento
Para ele morrer?
Horror de ser sempre com vida a consciência!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
Arranca-me, é vento; do chão da existência,
De ser um lugar!
E, pela alta noite que fazes mais'scura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura,
Meu tédio profundo.
E contra as vidraças dos que há que têm lares,
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares,
O meu coração!
Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!

sexta-feira, 25 de março de 2011

Machado de Assis


Adão e Eva


UMA SENHORA de engenho, na Bahia, pelos anos de mil setecentos e
tantos, tendo algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou a um dos convivas,
grande lambareiro, um certo doce particular. Ele quis logo saber o que era; a
dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; daí a pouco estavam
todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a
responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As
senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva, menos o juiz-de-fora,
que não dizia nada, e Frei Bento, carmelita, que interrogado pela dona da
casa, D. Leonor:
— Eu, senhora minha, toco viola, respondeu sorrindo; e não mentia, porque
era insigne na viola e na harpa, não menos que na teologia.
Consultado, o juiz-de-fora respondeu que não havia matéria para opinião;
porque as cousas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que
está contado no primeiro livro do Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral,
riso do carmelita que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos
sujeitos da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da
pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas cousas graves, era
gravíssimo.
— Frei Bento, disse-lhe D. Leonor, faça calar o Sr. Veloso.— Não o faço calar, acudiu o frade, porque sei que de sua boca há de sair
tudo com boa significação.
— Mas a Escritura... ia dizendo o mestre-de-campo João Barbosa.
— Deixemos em paz a Escritura, interrompeu o carmelita. Naturalmente, o
Sr. Veloso conhece outros livros...
— Conheço o autêntico, insistiu o juiz-de-fora, recebendo o prato de doce
que D. Leonor lhe oferecia, e estou pronto a dizer o que sei, se não mandam
o contrário.
— Vá lá, diga.
— Aqui está como as cousas se passaram. Em primeiro lugar, não foi Deus
que criou o mundo, foi o Diabo...
— Cruz! exclamaram as senhoras.
— Não diga esse nome, pediu D. Leonor.
— Sim, parece que... ia intervindo frei Bento.
— Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu
no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou
atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da
salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o
Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No
segundo dia, em que foram criadas as águas, nasceram as tempestades e os
furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro
dia foi feita a terra, e brotaram dela os vegetais, mas só os vegetais sem fruto
nem flor, os espinhosos, as ervas que matam como a cicuta; Deus, porém,
criou as árvores frutíferas e os vegetais que nutrem ou encantam. E tendo o
Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a lua e as
estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram criados os animais da
terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de
atenção.
Não era preciso pedi-lo; toda a mesa olhava para ele, curiosa.
Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo
depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar,
e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com
outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a
misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu,
investindo-os na posse de tudo. Um e outro caíram aos pés do Senhor,
derramando lágrimas de gratidão. "Vivereis aqui", disse-lhe o Senhor, "e
comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é a da ciência do
Bem e do Mal."
Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro,
admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que Deus lhe infundisse os
bons sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e Adão tinha ímpetos
de espancá-la. Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro,
ou na vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram ares tão
puros, nem águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o sol
tinha para nenhuma outra parte as mesmas
torrentes de claridade. E dando as mãos percorreram tudo, a rir muito, nos
primeiros dias, porque até então não sabiam rir. Não tinham a sensação dotempo. Não sentiam o peso da ociosidade; viviam da contemplação. De tarde
iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrelas, e raramente
chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dous anjos.
Naturalmente, o Tinhoso ficou danado quando soube do caso. Não podia
ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor;
mas ouvindo um rumor no chão entre folhas secas, olhou e viu que era a
serpente. Chamou-a alvoroçado.
— Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a
embaixatriz de teu pai, para reaver as obras de teu pai?
A serpente fez com a cauda um gesto vago, que parecia afirmativo; mas o
Tinhoso deu-lhe a fala, e ela respondeu que sim, que iria onde ele a
mandasse, — às estrelas, se lhe desse as asas da águia — ao mar, se lhe
confiasse o segredo de respirar na água — ao fundo da terra, se lhe ensinasse
o talento da formiga. E falava a maligna, falava à toa, sem parar, contente e
pródiga da língua; mas o diabo interrompeu-a:
— Nada disso, nem ao ar, nem ao mar, nem à terra, mas tão-somente ao
jardim de delícias, onde estão vivendo Adão e Eva.
— Adão e Eva?
— Sim, Adão e Eva.
— Duas belas criaturas que vimos andar há tempos, altas e direitas como
palmeiras?
— Justamente.
— Oh! detesto-os. Adão e Eva? Não, não, manda-me a outro lugar. Detestoos! Só a vista deles faz-me padecer muito. Não hás de querer que lhes faça
mal...
— É justamente para isso.
— Deveras? Então vou; farei tudo o que quiseres, meu senhor e pai. Anda,
dize depressa o que queres que faça. Que morda o calcanhar de Eva?
Morderei...
— Não, interrompeu o Tinhoso. Quero justamente o contrário. Há no jardim
uma árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal; eles não devem tocar nela,
nem comer-lhe os frutos. Vai, entra, enrosca-te na árvore, e quando um deles
ali passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e oferece-lhe, dizendo que é
a mais saborosa fruta do mundo; se te responder que não, tu insistirás,
dizendo que é bastante comê-la para conhecer o próprio segredo da vida.
Vai, vai...
— Vou; mas não falarei a Adão, falarei a Eva. Vou, vou. Que é o próprio
segredo da vida, não?
— Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do
mal, e se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a
parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito
sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças...
Esquecer? Já levava tudo de cor. Foi, penetrou no paraíso, rastejou até a
árvore do Bem e do Mal, enroscou-se e esperou. Eva apareceu daí a pouco,
caminhando sozinha, esbelta, com a segurança de uma rainha que sabe que
ninguém lhe arrancará a coroa. A serpente, mordida de inveja, ia chamar a
peçonha à língua, mas advertiu que estava ali às ordens do Tinhoso, e, com avoz de mel, chamou-a. Eva estremeceu.
— Quem me chama?
— Sou eu, estou comendo desta fruta...
— Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal!
— Justamente. Conheço agora tudo, a origem das coisas e o enigma da vida.
Anda, come e terás um grande poder na terra.
— Não, pérfida!
— Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que
te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido,
Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do
céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à
terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais
queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta
obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. Cores
das folhas verdes, cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de
refletir nos teus olhos. A mesma noite, de porfia com o sol, virá brincar nos
teus cabelos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as melhores vestiduras,
comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas plumas, e a terra
as suas flores, tudo, tudo, tudo...
Eva escutava impassível; Adão chegou, ouviu-os e confirmou a resposta
de Eva; nada valia a perda do paraíso, nem a ciência, nem o poder, nenhuma
outra ilusão da terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro, e deixaram a
serpente, que saiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso.
Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel:
— Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e
traze-os para a eterna bem-aventurança, que mereceram pela repulsa às
instigações do Tinhoso.
E logo o arcanjo, pondo na cabeça o elmo de diamante, que rutila como
um milhar de sóis, rasgou instantaneamente os ares, chegou a Adão e Eva, e
disse-lhes:
— Salve, Adão e Eva. Vinde comigo para o paraíso, que merecestes pela
repulsa às instigações do Tinhoso.
Um e outro, atônitos e confusos, curvaram o colo em sinal de obediência;
então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três subiram até à estância eterna,
onde miríades de anjos os esperavam, cantando:
— Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso,
aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar
impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e
morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da
esperança e da piedade.
E foi assim que Adão e Eva entraram no céu, ao som de todas as cítaras,
que uniam as suas notas em um hino aos dous egressos da criação...
Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor ...
para que lhe desse mais doce, enquanto os outros convivas olhavam uns para
os outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração
enigmática, ou, pelo menos, sem sentido aparente. D. Leonor foi a primeira
que falou:— Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logrando a gente. Não foi isso que
lhe pedimos, nem nada disso aconteceu, não é, frei Bento?
— Lá o saberá o Sr. juiz, respondeu o carmelita sorrindo.
E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce:
— Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor,
se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na
verdade, uma cousa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de
Itapagipe?

quinta-feira, 24 de março de 2011

Franz Kafka

A Metamorfose 
(…)
— Incomoda-os o som do violino, meus senhores? Se incomoda, paro agora.
Pelo contrário — replicou o hospede do meio —, não poderá a Menina Samsa
vir tocar ali para a sala ao pé de nós? Sempre é mais apropriado e está-se muito
melhor.
— Oh, com certeza — respondeu o pai de Gregório, como se fosse ele o
violinista.
Os hóspedes regressaram à sala de estar, onde ficaram à espera.
Imediatamente apareceu o pai de Gregório com a estante de música, a mãe com a
partitura e a irmã com o violino. Grete fez silenciosamente os preparativos para
tocar. Os pais, que nunca tinham alugado ‚quartos e por esse motivo tinham uma
noção exagerada da cortesia devida aos hóspedes, não se atreveram a sentar-se
nas próprias cadeiras. o pai encostou-se à porta, com a mão direita enfiada entre
dois botões do casaco, cerimoniosamente abotoado até acima. Quanto à mãe, um
dos hóspedes ofereceu-lhe a cadeira, onde se sentou a uma borda, sem sequer a
mexer do sítio onde ele a colocara.
A irmã de Gregório começou a tocar, enquanto os pais, sentados de um lado
e doutro, lhe observavam atentamente os movimentos das mãos. Atraído pela
música, Gregório aventurou-se a avançar ligeiramente, até ficar com a cabeça
dentro da sala de estar. Quase não se surpreendia com a sua crescente falta de
consideração para com os outros; fora-se o tempo em que se orgulhava de ser
discreto. A verdade, porém, é que, agora mais do que nunca, havia motivos para
ocultar-se: dada a espessa quantidade de pó que lhe enchia o quarto e que se
levantava no ar ao menor movimento, ele próprio estava coberto de pó. Ao deslocarse, arrastava atrás de si cotão, cabelos e restos de comida que se lhe agarravam ao
dorso e aos flancos. A sua indiferença em relação a tudo era grande de mais para
dar-se ao trabalho de deitar-se de costas e esfregar-se no tapete, para se limpar,
como antigamente fazia várias vezes ao dia. E, apesar daquele estado, não teve
qualquer pejo em avançar um pouco mais, penetrando no soalho imaculado da sala.
Era evidente que ninguém se apercebera da sua presença. A família estava
totalmente absorta no som do violino, mas os hóspedes, que inicialmente tinham
permanecido de pé, com as mãos nos bolsos, quase em cima da estante de música,
de tal maneira que por pouco poderiam ler também as notas, o que devia ter
perturbado a irmã, tinham se logo afastado para junto da janela, onde sussurravam
de cabeça baixa, e ali permaneceram até que o Senhor Samsa começou a fitá-los
ansiosamente. Efetivamente, era por de mais evidente que tinham sido
desapontadas as suas esperanças de ouvirem uma execução de qualidade ou com
interesse, que estavam saturados da audição e apenas continuavam a permitir que
ela lhes perturbasse o sossego por mera questão de cortesia. Adivinhava-se-lhes a
irritação pela maneira como sopravam o fumo dos charutos para o ar, pela boca e
pelo nariz. Grete estava a tocar tão bem! Tinha o rosto inclinado para o instrumento
e os olhos tristes seguiam atentamente a partitura. Gregório arrastou-se um pouco
mais para diante e baixou a cabeça para o chão, a fim de poder encontrar o olhar da
irmã. Poderia ser realmente um animal, quando a música tinha sobre si tal efeito?
Parecia abrir diante de si o caminho para o alimento desconhecido que tanto
desejava. Estava decidido a continuar o avanço até chegar ao pé da irmã e puxar-lhe pela saia, para dar-lhe a perceber que devia ir tocar para o quarto dele, visto que
ali ninguém como ele apreciava a sua música. Nunca a deixaria sair do seu quarto,

pelo menos enquanto vivesse. Pela primeira vez, o aspecto repulsivo seria de
utilidade: poderia vigiar imediatamente todas as portas do quarto e cuspir a qualquer
intruso. A irmã não precisava de sentir-se forçada, porque ficaria à vontade com ele.
Sentaria no sofá junto dele e inclinaria para confiar-lhe que estava na firme
disposição de matriculá-la no Conservatório e que, se não fosse a desgraça que lhe
acontecera, no Natal anterior — será que o Natal fora há muito tempo? — teria
anunciado essa decisão a toda a família, não permitindo qualquer objeção. Depois
de tal confidência, a irmã desataria em pranto e Gregório levantaria até se apoiar no
ombro dela e beijaria seu pescoço, agora liberto de colares, desde que estava
empregada.
— Senhor Samsa! — gritou o hóspede do meio ao pai de Gregório, ao mesmo
tempo que, sem desperdiçar mais palavras, apontava para Gregório, que lentamente
se esforçava por avançar. o violino calou-se e o hóspede do meio começou a sorrir
para os companheiros, acenando com a cabeça. Depois tomou a olhar para
Gregório. Em vez de enxotá-lo, o pai parecia julgar mais urgente acalmar os
hóspedes, embora estes não estivessem nada agitados e até parecessem mais
divertidos com ele do que com a audição de violino, Precipitou-se para eles e,
estendendo os braços, tentou convencê-los a voltarem ao quarto que ocupavam, ao
mesmo tempo que lhes ocultava a visão de Gregório. Nessa altura começaram a
ficar mesmo incomodados devido ao comportamento do velho o porque
compreendessem de repente que, tinham Gregório por vizinho de quarto. Pediramlhe satisfações, agitando os braços no ar como ele, ao mesmo tempo que confiavam
embaraçadamente as barbas, e só relutantemente recuaram para o quarto que lhes
estava destinado. A irmã de Gregório, que para ali se deixara ficar, desamparada,
depois de tão brusca interrupção da sua execução musical, caiu novamente em si,
endireitou-se rapidamente, depois de um instante a segurar no violino e no arco e a
fitar a partitura, e, atirando com o violino para o colo da mãe, que permanecia na
cadeira a lutar com um acesso de asma, correu para o quarto dos hóspedes, para
onde o pai os conduzia, agora com maior rapidez. Com gestos hábeis, compôs os
travesseiros e as colchas. Ainda os hóspedes não tinham chegado ao quarto, saía
pela porta fora, deixando as camas feitas.

(…)
Gregório não tivera a menor intenção de assustar fosse quem fosse, e muito
menos a irmã. Tinha simplesmente começado a virar-se, para rastejar de regresso
ao quarto, Compreendia que a operação devia causar medo, Pois estava tão
diminuído que só lhe era possível efetuar a rotação erguendo a cabeça e apoiandose com ela no chão a cada passo. Parou e olhou em volta. Pareciam ter
compreendido a Pureza das suas intenções, e o alarme fora apenas passageiro;
agora todos, em melancólico silêncio. A mãe continuava sentada, com as pernas
rigidamente esticadas e comprimidas uma contra a outra, com os olhos a fecharemse de exaustão. o pai e a irmã estavam sentados ao lado um do outro, a irmã com
um braço passado em torno do pescoço do pai.
Talvez agora me deixem dar a volta, pensou Gregório, retomando os seus
esforços. Não podia evitar resfolgar de esforço e, de vez em quando, era forçado a
parar, para recobrar o fôlego. Ninguém o apressou, deixando-o completamente
entregue a si próprio. Completada a volta, começou imediatamente a rastejar direito
ao quarto. Ficou surpreendido com a distância que dele o separava e não conseguiu
perceber como tinha sido capaz de cobri-la há pouco, quase sem o notar.
Concentrado na tarefa de rastejar o mais depressa possível, mal reparou que nem
um som, nem uma exclamação da família, lhe perturbavam o avanço. Só quando
estava no limiar da porta é que virou a cabeça para trás, não completamente, porque
os músculos do pescoço estavam a ficar perros, mas o suficiente para verificar que
ninguém se tinha mexido atrás dele, exceto a irmã, que se pusera de pé. o seu
último olhar foi para a mãe, que ainda não mergulhara completamente no sono.
Mal tinha entrado no quarto, sentiu fecharem apressadamente a porta  e
darem a volta à chave. O súbito ruído atrás de si assustou-o tanto que as pernas
fraquejaram. Fora a irmã que revelara tal precipitação. Tinha-se mantido de pé, à
espera, e dera um salto para fechar a porta. Gregório, que nem tinha ouvido a sua
aproximação, escutou-lhe a voz:
— Até que enfim! — exclamou ela para os pais, ao girar a chave na
fechadura.
— E agora?, perguntou Gregório a si mesmo, relanceando os olhos pela
escuridão. Não tardou em descobrir que não podia mexer as pernas. Isto não o
surpreendeu, pois o que achava pouco natural era que alguma vez tivesse sido
capaz de agüentar-se em cima daquelas frágeis perninhas. Tirando isso, sentia-se
relativamente bem. É certo que lhe doía o corpo todo, mas parecia-lhe que a dor
estava a diminuir e que em breve desapareceria. A maçã podre e a zona inflamada
do dorso em torno dela quase não o incomodavam. Pensou na família com ternura e
amor. A sua decisão de partir era, se possível, ainda mais firme do que a da irmã.
Deixou-se ficar naquele estado de vaga e calma meditação até o relógio da torre
bater as três da manhã. Uma vez mais, os primeiros alvores do mundo que havia
para além da janela penetraram-lhe a consciência. Depois, a cabeça pendeu-lhe
inevitavelmente para o chão e soltou-se-lhe pelas narinas um último e débil suspiro.
De manhã, ao chegar, a empregada, com toda a força e impaciência, batia
sempre violentamente com as portas, por mais que lhe recomendassem que o não
fizesse, pois ninguém podia gozar um momento de sossego desde que ela chegava,
não viu nada de especial ao espreitar, como de costume, para dentro do quarto de
Gregório. Pensou que ele se mantinha imóvel de propósito, fingindo-se amuado,
pois julgava-o capaz das maiores espertezas. Tinha à mão a vassoura de cabo
comprido, procurou obrigá-lo a pôr-se de pé com ela; empunhando-a à entrada da
porta. Ao ver que nem isso surtia efeito, irritou-se e bateu-lhe com um pouco mais de
força, e só começou a sentir curiosidade depois de não encontrar qualquer
resistência. Compreendendo-se repentinamente do que sucedera, arregalou os
olhos e, deixando escapar um assobio, não ficou mais tempo a pensar no assunto;
escancarou a porta do quarto dos Samsa e gritou a plenos pulmões para  a
escuridão:
— Venham só ver isto: ele morreu! Está para ali estendido, morto!
0 Senhor e a Senhora Samsa ergueram-se na cama e, ainda sem
perceberem completamente o alcance da exclamação da empregada,
experimentaram certa dificuldade em vencer o choque que lhes produzira. A seguir,
saltaram da cama, cada um do seu lado. 0 Senhor Samsa pôs um cobertor pelos
ombros; a Senhora Samsa saiu de camisa de dormir, tal como estava. E foi neste
preparo que entraram no quarto de Gregório. Entretanto, abrira-se também a porta
da sala de estar, onde Grete dormia desde a chegada dos hóspedes; estava
completamente vestida, como se não tivesse chegado a deitar-se, o que parecia
confirmar-se igualmente pela palidez do rosto.
— Morto? - perguntou a Senhora Samsa, olhando inquisidoramente para a
criada, embora pudesse ter verificado por si própria e o fato fosse de tal modo
evidente que dispensava qualquer investigação.
— Parece-me que sim — respondeu a criada, que confirmou a afirmação
empurrando o corpo inerte bem para um dos extremos do quarto, com a vassoura. A
Senhora Samsa fez um movimento como que para impedi-lo, mas logo se deteve.
— Muito bem — disse o Senhor Samsa —, louvado seja Deus.
— Persignou-se, gesto que foi repetido pelas três mulheres. Grete, que não
conseguia afastar os olhos do cadáver, comentou: — Vejam só como ele estava
magro. Há tanto tempo que não comia! Quando se ia buscar à comida, estava
exatamente como quando se tinha posto no quarto. — Efetivamente o corpo de
Gregório apresentava-se espalmado e seco, agora que se podia ver de perto e sem
estar apoiado nas patas.
— Chega aqui um bocadinho, Grete disse a Senhora Samsa, com um sorriso
trêmulo, A filha seguiu-os até ao quarto, sem deixar de voltar-se para ver o cadáver.
A empregada fechou a porta e abriu a janela de par em par. Apesar de ser ainda
muito cedo, sentia-se um certo calor no ar matinal. No fim de contas, estava-se já no
fim de Março.
Emergindo do quarto, os hóspedes admiraram-se de não ver o almoço
preparado. Tinham sido esquecidos.

— Onde está o nosso almoço? — perguntou sobranceiramente o hóspede do
meio à criada. Esta, porém, levou o indicador aos lábios e, sem uma palavra,
indicou-lhes precipitadamente o quarto de Gregório. Para lá se dirigiram e ali ficaram
especados, com as mãos nos bolsos dos casacos, em torno do cadáver de Gregório,
no quarto agora muito bem iluminado.
Nessa altura abriu-se a porta do quarto dos Samsa e apareceu o pai, fardado,
dando uma das mãos à mulher e outra à filha. Aparentavam todos um certo ar de
terem chorado e, de vez em quando, Grete escondia o rosto no braço do pai.
— Saiam imediatamente da minha casa! — exclamou o Senhor Samsa,
apontando a porta, sem deixar de dar os braços à mulher e à filha.
— Que quer o senhor dizer com isso? — interrogou-o o hóspede do meio, um
tanto apanhado de surpresa, com um débil sorriso. os outros dois puseram as mãos
atrás das costas e começaram a esfregá-las, como se aguardassem, felizes,  a
concretização de uma disputa da qual haviam de sair vencedores.
— Quero dizer exatamente o que disse respondeu o Senhor Samsa,
avançando a direito para o hóspede, juntamente com as duas mulheres.  0
interlocutor manteve-se no lugar, momentaneamente calado e fitando o chão, como
se tivesse havido uma mudança no rumo dos seus pensamentos.
— Então sairemos, pois, com certeza - respondeu depois, erguendo os olhos
para o Senhor Samsa, como se, num súbito acesso de humildade, esperasse que tal
decisão fosse novamente ratificada. 0 Senhor Samsa limitou-se a acenar uma ou
duas vezes com a cabeça e unia expressão significativa no olhar. Na circunstância,
o hóspede encaminhou-se, com largas passadas, para o vesti- bulo. Os dois amigos,
que escutavam a troca de palavras e tinham deixado momentaneamente de esfregar
as mãos, apressaram-se a segui-lo, como se receassem que o Senhor Samsa
chegasse primeiro ao vestíbulo, impedindo-os de se juntarem ao chefe. Chegados
ao vestíbulo, recolheram os chapéus e as bengalas, fizeram uma vênia silenciosa e
deixaram a casa. Com uma desconfiança que se revelou infundada, o Senhor
Samsa e as duas mulheres seguiram-nos até ao patamar; debruçados sobre  o
corrimão, acompanharam com o olhar a lenta mas decidida progressão, escada
abaixo, das três figuras, que ficavam ocultas no patamar de cada andar por que iam
passando, logo voltando a aparecer. no instante seguinte. Quanto mais pequenos se
tornavam na distância, menor se tornava o interesse com que a família Samsa os
seguia. Quando o rapaz do talho, subindo galhardamente as escadas com  o
tabuleiro à cabeça, se cruzou com eles, o Senhor Samsa e as duas mulheres
acabaram por abandonar o patamar e recolher a casa, como se lhes tivessem tirado
um peso de cima. Resolveram passar o resto do dia a descansar e dar mais tarde
um passeio. Além de merecerem essa pausa no trabalho, necessitavam
absolutamente dela. Assim,, sentaram-se à mesa e escreveram três cartas de
justificação de ausência: o Senhor Samsa à gerência do banco, a Senhora Samsa à
dona da loja para quem trabalhava e Grete ao patrão da firma onde estava
empregada. Enquanto escreviam, apareceu a empregada e avisou que iria sair
naquele momento, pois já tinha acabado o trabalho diário.
A princípio, limitaram-se a acenar afirmativamente, sem sequer levantarem a
vista, mas, como ela continuasse ali especada, olharam irritadamente para ela.

— Sim? — disse o Senhor Samsa. A criada sorria no limiar da porta, como se
tivesse boas notícias a dar-lhes, mas não estivesse disposta a dizer uma palavra, a
menos que fosse diretamente interrogada. A pena de avestruz espetada no chapéu,
com que o Senhor Samsa embirrava desde o próprio dia em que a mulher tinha
começado a trabalhar lá em casa, agitava-se animadamente em todas as direções.
— Sim, o que há? — perguntou o Senhor Samsa, que lhe merecia mais
respeito do que os outros.
— Bem — replicou a criada, rindo de tal maneira que não conseguiu
prosseguir imediatamente —, era só isto: não é preciso preocuparem-se com a
maneira de se verem livres daquilo aqui no quarto ao lado. Eu já tratei de tudo.
— 0 Senhor Samsa e Grete curvaram-se novamente sobre as cartas,
parecendo preocupados.Percebendo que ela estava ansiosa por começar a delatar
todos os por mais pequenas, o Senhor Samsa interrompeu-a com um gesto decisivo.
Não lhe sendo permitido contar a história, a mulher lembrou-se da pressa que
tinha e, obviamente ressentida, atirou-lhes um — Bom dia a todos — disse e girou
desabridamente nos calcanhares, afastando-se no meio de um assustador bater de
portas.
— Hoje à noite vamos despedi-la — disse o Senhor Samsa, mas nem a
mulher nem a filha deram qualquer resposta, pois a criada parecia ter perturbado
novamente a tranqüilidade que mal tinham recuperado. Levantaram-se ambas e
foram-se postar à janela, muito agarradas uma à outra. 0 Senhor Samsa voltou-se
na cadeira, para as observar durante uns instantes. Depois dirigiu-se a elas:
— Então, então! 0 que lá vai, lá vai. E podiam dar-me um bocado mais de
atenção. — As duas mulheres responderam imediatamente a este apelo,
precipitando-se para ele e acarinhando-o, após o que acabaram rapidamente as
cartas.
Depois saíram juntos de casa, coisa que não sucedia havia meses,  e
meteram-se num trem em direção ao campo, nos arredores da cidade. Dentro do
trem onde eram os únicos passageiros, sentia-se o calor do sol. Confortavelmente
reclinados nos assentos, falaram das perspectivas futuras, que, bem vistas as
coisas, não eram más de todo. Discutiram os empregos que tinham, o que nunca
tinham feito até então, e chegaram à conclusão de que todos eles eram estupendos
e pareciam promissores. A melhor maneira de atingirem uma situação menos
apertada era, evidentemente, mudarem-se para uma casa menor, que fosse mas
barata, mas também com melhor situação e mais fácil de governar que a anterior,
cuja escolha fora feita por Gregório. Enquanto conversavam sobre estes assuntos, o
Senhor e a Senhora Samsa notaram, de súbito, quase ao mesmo tempo,  a
crescente vivacidade de Grete, de que, apesar de todos os desgostos dos últimos
tempos, que a haviam tornado pálida, se tinha transformado numa bonita e esbelta
menina. 0 reconhecimento desta transformação tranqüilizou-os e, quase
inconscientemente, trocaram olhares de aprovação total, concluindo que se
aproximava a altura de lhe arranjar um bom marido. E quando, terminado o passeio,
a filha se pôs de pé antes deles, distendendo o corpo jovem, sentiram, com isso, que
aqueles novos sonhos e suas esperançosas intenções haviam de ser realizados.

FIM

quarta-feira, 23 de março de 2011

Letras & Linhas: História da Arte

Letras & Linhas: História da Arte: " A palavra “arte” teve muitos significados durante a história. Sempre houve uma pequena discussão, pois alguns achavam que a arte era..."

terça-feira, 22 de março de 2011

Letras & Linhas: História da Arte

Letras & Linhas: História da Arte: " A palavra “arte” teve muitos significados durante a história. Sempre houve uma pequena discussão, pois alguns achavam que a arte era..."

domingo, 20 de março de 2011

Franz Kafka

A Metamorfose
Capítulo III
Como ninguém se aventurava a retirá-la, a maçã manteve-se cravada no
corpo de Gregório como recordação visível da agressão, que lhe causara um grave
ferimento, afetando-o havia mais de um mês. A ferida parecia ter feito que o próprio
pai se lembrasse de que Gregório era um membro da família, apesar do seu
desgraçado e repelente aspecto atual, não devendo, portanto, ser tratado como
inimigo; pelo contrário, o dever familiar impunha que esquecessem o desgosto e
tudo suportassem com paciência.
O ferimento tinha-lhe diminuído, talvez para sempre, a capacidade de
movimentos e eram-lhe agora precisos longos minutos para se arrastar ao longo do
quarto, como um velho inválido; nas presentes condições, estava totalmente fora de
questão a possibilidade de trepar pela parede.
Parecia-lhe que este agravamento da sua situação era suficientemente
compensado pelo fato de terem passado a deixar aberta, ao anoitecer, a porta que
dava para a sala de estar, a qual fitava intensamente desde uma a duas horas

antes, aguardando o momento em que, deitado na escuridão do quarto, invisível aos
outros, podia vê-los sentados à mesa, sob a luz, e ouvi-los conversarem, numa
espécie de comum acordo, bem diferente da escuta que anteriormente escutara.
É certo que faltava às suas relações com a família a animação de outrora,
que sempre recordara com certa saudade nos acanhados quartos de hotel em cujas
camas úmidas se acostumara a cair, completamente esgotado. Atualmente,
passavam a maior parte do tempo em silêncio. Pouco tempo após o jantar, o pai
adormecia na cadeira de braços; a mãe e a irmã exigiam silêncio uma à outra.
Enquanto a mãe curvada sob o candeeiro, bordava para uma firma de artigos de
roupa interior, a irmã, que se empregara como caixeira, estudava estenografia e
francês, na esperança de melhor situação. De vez em quando, o pai acordava e,
como se não tivesse consciência de que estivera a dormir, dizia à mãe:
— Hoje tens cosido que te fartas! — caindo novamente no sono, enquanto as
duas mulheres trocavam um sorriso cansado.
Por qualquer estranha teimosia, o pai persistia em manter-se fardado, mesmo
em casa, e, enquanto o pijama repousava, inútil, pendurado no cabide, dormia
completamente vestido onde quer que se sentasse, como se estivesse sem pre
pronto a entrar em ação e esperasse apenas uma ordem do superior. Em
conseqüência, a farda, que, para começar, não era nova, principiava a ter um ar
sujo, mau grado os desvelados cuidados a que a mãe e a irmã se entregavam para
a manter limpa. Não raro, Gregório passava a noite a fitar as muitas nódoas de
gordura do uniforme, cujos botões dourados se mantinham sempre brilhantes, dentro

do qual o velho dormia sentado, por certo desconfortavelmente, mas com a maior
das tranqüilidades.
Logo que o relógio batia as dez, a mãe tentava despertar o marido com
palavras meigas e convencê-lo depois a ir para a cama, visto que assim nem dormia
descansado, que era o mais importante para quem tinha de entrar ao serviço às seis
da manhã. Não obstante, com a teimosia que o não largava desde que se
empregara no banco, insistia sempre em ficar à mesa até mais tarde, embora
tornasse invariavelmente a cair no sono e por fim só a muito custo a mãe
conseguisse que ele se levantasse da cadeira e fosse para a cama. Por mais que
mãe e filha insistissem com brandura, ele mantinha-se durante um quarto de hora a
abanar a cabeça, de olhos fechados, recusando-se a abandonar a cadeira. A mãe
sacudia-lhe a manga, sussurrando-lhe ternamente ao ouvido, mas ele não se
deixava levar. Só quando ambas o erguiam pelas axilas, abria os olhos e as fitava,
alternadamente, observando quase sempre: Que vida a minha! Chama-se a isto uma
velhice descansada, apoiando-se na mulher e na filha, erguia-se com dificuldade,

como se não pudesse com o próprio peso, deixando que elas o conduzissem até à
porta, após o que as afastava, prosseguindo sozinho, enquanto a mãe abandonava
a costura e a filha pousava a caneta para correrem a ampará-lo no resto do
caminho.
Naquela família assoberbada de trabalho e exausta, havia lá alguém que
tivesse tempo para se preocupar com Gregório mais do que o estritamente
necessário! As despesas da casa eram cada vez mais reduzidas. A criada fora
despedida; uma grande empregada ossuda vinha de manhã e à tarde para os
trabalhos mais pesados, encarregando-se a mãe de Gregório de tudo o resto,
incluindo a dura tarefa de bordar. Tinham-se visto até na obrigação de vender as
jóias da família, que a mãe e a irmã costumavam orgulhosamente pôr para as festas

e cerimônias, conforme Gregório descobriu uma noite, ouvindo-os discutir o preço
por que haviam conseguido vendê-las. Mas o que mais lamentava era o fato de não
poderem deixar a casa, que era demasiado grande para as necessidades atuais,
pois não conseguiam imaginar meio algum de deslocar Gregório. Gregório bem via
que não era a consideração pela sua pessoa o principal obstáculo à mudança, pois
facilmente poderiam metê-lo numa caixa adequada, com orifícios que lhe
permitissem respirar; o que, na verdade, os impedia de mudarem de casa era o
próprio desespero e a convicção de que tinham sido isolados por uma infelicidade
que nunca sucedera a nenhum dos seus parentes ou conhecidos. Passavam pelas
piores provações que o mundo impõe aos pobres; o pai ia levar o pequeno almoço
aos empregados de menor categoria do banco, a mãe gastava todas as energias a
confeccionar roupa interior para estranhos e a irmã saltava de um lado para outro,
atrás do balcão, às ordens dos fregueses, mas não dispunham de forças para mais.
E a ferida que Gregório tinha no dorso parecia abrir-se de novo quando a mãe e a
irmã, depois de meterem o pai na cama, deixavam os seus trabalhos no local e se
sentavam, com a cara encostada uma à outra. A mãe costumava então dizer,
apontando para o quarto de Gregório:
— Fecha a porta, Grete.
E lá ficava ele novamente mergulhado na escuridão, enquanto na sala ao lado
as duas mulheres misturavam as lágrimas ou, quem sabe, se deixavam ficar à mesa,
de olhos enxutos, a contemplar o vazio.

(…)

sábado, 19 de março de 2011

Franz Kafka


A Metamorfose
Capítulo I
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por
si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão
duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o
arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual
a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar.
Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente
finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.
Que me aconteceu ? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar
quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as
quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado,
desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa
era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de
uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma
senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao
espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia! Gregório desviou
então a vista para a janela e deu com o céu nublado — ouviam-se os pingos de
chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não
seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? — cogitou. Mas era
impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação,
não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita,
tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes,
fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando
começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes
experimentara. Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar,
dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório
propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de andar sempre a
viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições
irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam
amigos íntimos. Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga;
arrastou-se lentamente sobre as costas, — mais para cima na cama, de modo a
conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que
estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não
compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas
imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio
gela- do. Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo,
pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros
comerciantes que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para
o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a
sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer fazer isso com o
meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era, capaz de ser bom para
mim — quem sabe? Se não tivesse de me agüentar, por causa dos meus pais, há
muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o
que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da secretária! Também é um

hábito esquisito, esse de se sentar a uma secretária em plano elevado e falar para
baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de aproximar-se bastante,
porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma esperança; depois de ter
economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem — o que deve
levar outros cinco ou seis anos —, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar
completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte
às cinco.
Olhou para o despertador, que fazia tique-taque na cômoda. Pai do Céu! —
pensou. Eram seis e meia e os ponteiros moviam-se em silêncio, até passava da
meia hora, era quase um quarto para as sete. O despertador não teria tocado? Da
cama, via-se que estava corretamente regulado para as quatro; claro que devia ter
tocado. Sim, mas seria possível dormir sossegadamente no meio daquele barulho
que trespassava os ouvidos? Bem, ele não tinha dormido sossegadamente; no
entanto, aparentemente, se assim era, ainda devia ter sentido mais o barulho. Mas
que faria agora? o próximo trem saía às sete; para o apanhar tinha de correr como
um doido, as amostras ainda não estavam embrulhadas e ele próprio não se sentia
particularmente fresco e ativo. E, mesmo que apanhasse o trem, não conseguiria
evitar uma reprimenda do chefe, visto que o porteiro da firma havia de ter esperado
o trem das cinco e há muito teria comunicado a sua ausência. O porteiro era um
instrumento do patrão, invertebrado e idiota. Bem, suponhamos que dizia que estava
doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante
cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria
lá a casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e
poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que,
evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes
perfeitamente saudáveis. E enganaria assim tanto desta vez? Efetivamente,
Gregório sentia-se bastante bem, à parte uma sonolência que era perfeitamente
supérflua depois de um tão longo sono, e sentia-se mesmo esfomeado.
À medida que tudo isto lhe passava pela mente a toda a velocidade, sem ser
capaz de resolver a deixar a cama — o despertador acabava de indicar um quarto
para as sete, ouviram-se pancadas cautelosas na porta que ficava por detrás da
cabeceira da cama.
— Gregório — disse uma voz, que era a da mãe, é um quarto para as sete.
Não tem de apanhar o trem?
Aquela voz suave! Gregório teve um choque ao ouvir a sua própria voz
responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível  e
persistente guincho chilreante como fundo sonoro, que apenas conservava a forma
distinta das palavras no primeiro momento, após o que subia de tom, ecoando em
torno delas, até destruir-lhes o sentido, de tal modo que não podia ter-se a certeza
de tê-las ouvido corretamente. Gregório queria dar uma resposta longa, explicando
tudo, mas, em tais circunstâncias, limitou-se a dizer:
— Sim, sim, obrigado, mãe, já vou levantar.
A porta de madeira que os separava devia ter evitado que a sua mudança de
voz fosse perceptível do lado de fora, pois a mãe contentou-se com esta afirmação,
afastandose rapidamente. Esta breve troca de palavras tinha feito os outros
membros da família notarem que Gregório estava ainda em casa, ao contrário do

que esperavam, e agora o pai batia a uma das portas laterais, suavemente, embora
com o punho.
— Gregório, Gregório — chamou — , o que você tem?
E, passando pouco tempo depois, tornou a chamar, com voz mais firme:
— Gregório! Gregório!
Junto da outra porta lateral, a irmã chamava, em tom baixo e quase
lamentoso:
— Gregório? Não se sente bem? Precisa de alguma coisa?
Respondeu a ambos ao mesmo tempo:
— Estou quase pronto — e esforçou-se o máximo por que a voz soasse tão
normal quanto possível, pronunciando as palavras muito claramente e deixando
grandes pausas entre elas. Assim, o pai voltou ao breve almoço, mas a irmã
segredou:
— Gregório, abre esta porta, anda.

(…)

sexta-feira, 18 de março de 2011

Letras & Linhas: Biografias

Letras & Linhas: Biografias: "Franz Kafka (Praga, 3 de julho de 1883 — Klosterneuburg, 3 de junho de 1924) Um dos maiores escritores de ficção da língua alemã d..."

quinta-feira, 17 de março de 2011

Florbela Espanca



CRISÂNTEMOS 

Sombrios mensageiros das violetas, 
De longas e revoltas cabeleiras; 
Brancos, sois o casto olhar das virgens 
Pálidas que ao luar, sonham nas eiras. 
Vermelhos, gargalhadas triunfantes, 
Lábios quentes de sonhos e desejos, 
Carícias sensuais d´amor e gozo; 
Crisântemos de sangue, vós sois beijos! 
Os amarelos riem amarguras, 
Os roxos dizem prantos e torturas, 
Há-os também cor de fogo, sensuais... 
Eu amo os crisântemos misteriosos 
Por serem lindos, tristes e mimosos, 
Por ser a flor de que tu gostas mais! 

CRAVOS VERMELHOS 

Bocas rubras de chama a palpitar, 
Onde fostes buscar a cor, o tom, 
Esse perfume doido a esvoaçar, 
Esse perfume capitoso e bom?! 
Sois volúpias em flor! Ó gargalhadas 
Doidas de luz, ó almas feitas risos! 
Donde vem essa cor, ó desvairadas, 
Lindas flores d´esculturais sorrisos?! 
 Bem sei vosso segredo...Um rouxinol...
Que vos viu nascer, ó flores do mal 
Disse-me agora: "Uma manhã, o sol, 
O sol vermelho e quente como estriga 
De fogo, o sol do céu de Portugal 
Beijou a boca a uma rapariga..." 



SER POETA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior  
Do que os homens! Morder como quem beija!  
É ser mendigo e dar como quem seja  
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!  
É ter de mil desejos o esplendor  
E não saber sequer que se deseja!  
É ter cá dentro um astro que flameja,  
É ter garras e asas de condor!  
É ter fome, é ter sede de infinito!  
Por elmo, as manhãs de ouro e de cetim...  
É condensar o mundo num só grito!  
   
E é amar-te, assim, perdidamente...  
É seres alma e sangue e vida em mim  
E dizê-lo cantando a toda a gente! 

terça-feira, 15 de março de 2011

Letras & Linhas: História da Arte

Letras & Linhas: História da Arte: " A palavra “arte” teve muitos significados durante a história. Sempre houve uma pequena discussão, pois alguns achavam que a arte era..."

segunda-feira, 14 de março de 2011

Fernando Pessoa



Navegar é Preciso

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

domingo, 13 de março de 2011

Tom Jobim

Águas de Março
É pau é pedra
É o fim do caminho
É um resto de toco
É um pouco sozinho...
É um caco de vidro
É a vida é o sol
É a noite é a morte
É um laço é o anzol...
É peroba do campo
É o nó da madeira
Caingá, Candeia
É o matita-pereira...
É madeira de vento
Tombo da ribanceira
É um mistério profundo
É o queira ou não queira...
É o vento ventando
É o fim da ladeira
É a viga é o vão
Festa da Cumeeira...
É a chuva chovendo
É conversa ribeira
Das águas de março
É o fim da canseira...
É o pé é o chão
É a marcha estradeira
Passarinho na mão
Pedra de atiradeira...
É uma ave no céu
É uma ave no chão
É um regato é uma fonte
É um pedaço de pão...
É o fundo do poço
É o fim do caminho
No rosto um desgosto
É um pouco sozinho...
É um estrepe é um prego
É uma ponta é um ponto
É um pingo pingando
É uma conta é um conto...
É um peixe é um gesto
É uma prata brilhando
É a luz da manhã
É o tijolo chegando...
É a lenha é o dia
É o fim da picada
É a garrafa de cana
Estilhaço na estrada...
É o projeto da casa
É o corpo na cama
É o carro enguiçado
É a lama é a lama...
É um passo é uma ponte
É um sapo é uma rã
É um resto de mato
Na luz da manhã...
São as águas de março
Fechando o verão
E a promessa de vida
No teu coração...
É uma cobra é um pau
É João é José
É um espinho na mão
É um corte no pé...
São as águas de março
Fechando o verão
É a promessa de vida
No teu coração...
É pau é pedra
É o fim do caminho
É um resto de toco
É um pouco sozinho...
É um passo é uma ponte
É um sapo é uma rã
É um belo horizonte
É uma febre terçã...
São as águas de março
Fechando o verão
É a promessa de vida
No teu coração...
-Pau, -Edra, -Im, -Inho
-Esto, -Oco, -Ouco, -Inho
-Aco, -Idro, -Ida, -Ol
-Oite, -Orte, -Aço, -Zol...
São as águas de março
Fechando o verão
É a promessa de vida
No teu coração...

sábado, 12 de março de 2011

Doris Lessing


Roteiro para um Passeio ao Inferno 
Sim, eu os chamarei, claro, se bem que agora um novo frio em meu coração me previna de um medo que antes não tinha. Jamais pensara, em todos aqueles ciclos, círculos e circuitos, rodando, rodando, rodando, que Eles pudessem simplesmente não me notar, como um homem poderia deixar de notar um gatinho dormindo ou um cachorrinho cego escondido sob a dobra de sua manta malcheirosa. Por que haveriam de notar uma balsa no mar imenso? Mas não há nada a fazer senão continuar, sem remo, sem leme, sem dormir, exausto. Afinal,sei que seria bondade aportar na praia de Nancy e dizer-lhe que seu Charlie afinal encontrou algo – mas o quê? Eles, suponho, embora nem mesmo possa lhe dizer como se sentiu ao ser absorvido por aquela Coisa brilhante. Ela me cantará sua canção, eu em minha balsa, passando à deriva; as mulheres se alinharão pelos muros dos jardins de verão cantando, e então cantarei que é passado o tempo do amor? E depois encontrarei o amigo de George e lhe gritarei que George – o quê? E onde? E depois e adiante, até tornar a ver minha Conchita me esperando, vestida de freira, levada a isso por todas as minhas viagens e navegações.
O homem, como uma grande árvore,
Ressente as tormentas.
Braços, joelhos, mãos,
Muito duros para o amor,
Como uma árvore resiste ao vento.
Mas, desperta de vagar,
E no bosque escuro
O vento parte as folhas
E a fera negra arremete da caverna.
Meu amor, quando dizes:
“Aqui esteve a tormenta,
Aqui esteve ela,
Aqui, a fera fabulosa”,
Dirás também
Que primeiro nos beijamos de lábios fechados, temerosos,
Como se um pássaro dormisse entre elas?
Dirás:
“Foi o passarinho branco que me prendeu?”
E assim ela canta, cada vez que passo, rodando, rodando, e continuando sempre.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Letras & Linhas: Biografias

Letras & Linhas: Biografias: "Doris Lessing Doris Lessing foi oficialmente batisada como Doris May Tayler, em Kermanshah, no Curdistão iraniano, então parte do Reino d..."

quinta-feira, 10 de março de 2011

Luís Fernando Veríssimo


A Princesa e a Rã

Era uma vez... numa terra muito distante...uma princesa linda, independente e cheia de auto-estima.
Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu castelo era relaxante e ecológico...
Então, a rã pulou para o seu colo e disse: linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito.
Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu lindo castelo.
A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e seríamos felizes para sempre...
Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma:
- Eu, hein?... nem morta!

terça-feira, 8 de março de 2011

Vinícius de Moraes


Samba da Bênção
É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não
Senão é como amar uma mulher só linda
E daí? Uma mulher tem que ter
Qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão
Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não
Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Ponha um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
Eu, por exemplo, o capitão do mato
Vinicius de Moraes
Poeta e diplomata
O branco mais preto do Brasil
Na linha direta de Xangô, saravá!
A bênção, Senhora
A maior ialorixá da Bahia
Terra de Caymmi e João Gilberto
A bênção, Pixinguinha
Tu que choraste na flauta
Todas as minhas mágoas de amor
A bênção, Sinhô, a benção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nelson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro
Você, sobrinho de Nonô
A bênção, Noel, sua bênção, Ary
A bênção, todos os grandes
Sambistas do Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxum
A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim
Parceiro e amigo querido
Que já viajaste tantas canções comigo
E ainda há tantas por viajar
A bênção, Carlinhos Lyra
Parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento
E ao pensamento
A bênção, a bênção, Baden Powell
Amigo novo, parceiro novo
Que fizeste este samba comigo
A bênção, amigo
A bênção, maestro Moacir Santos
Não és um só, és tantos como
O meu Brasil de todos os santos
Inclusive meu São Sebastião
Saravá! A bênção, que eu vou partir
Eu vou ter que dizer adeus
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração

sábado, 5 de março de 2011

Tom Jobim

Samba de Uma Nota Só

Eis aqui este sambinha feito numa nota só.
Outras notas vão entrar, mas a base é uma só.
Esta outra é conseqüência do que acabo de dizer.
Como eu sou a conseqüência inevitável de você.
Quanta gente existe por aí que fala tanto e não diz nada,
Ou quase nada.
Já me utilizei de toda a escala e no final não sobrou nada,
Não deu em nada.
E voltei pra minha nota como eu volto pra você.
Vou contar com uma nota como eu gosto de você.
E quem quer todas as notas: ré, mi, fá, sol, lá, si, dó.
Fica sempre sem nenhuma, fique numa nota só.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Letras & Linhas: História da Arte

Letras & Linhas: História da Arte: " A palavra “arte” teve muitos significados durante a história. Sempre houve uma pequena discussão, pois alguns achavam que a arte era..."

quarta-feira, 2 de março de 2011

Luís Fernando Veríssimo

Luis Fernando Verissimo
Bandeira Branca
Ele: tirolês. Ela: odalisca; Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
- Como é teu nome?
- Janice. E o teu?
- Píndaro.
- O quê?!
- Píndaro.
- Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
- Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse - Até o Carnaval que vem - e saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
- Me dá alguma coisa.
- O quê?
- Qualquer coisa.
- O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

***
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
- Você vomitou a alma - disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube - e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
- Sei lá. Bávara tropical - disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
- E aquela bailarina espanhola?
- Nem me fala. E o toureiro?
- Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse -Píndaro?! - e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi - pelo menos o meu tirolês era autêntico - e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo - não vale, você cresceu mais do que eu - e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.

***
Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse - quase não reconheci você sem fantasias -. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora - preciso te dizer uma coisa -, e ela dissera - no Carnaval que vem, no Carnaval que vem - e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara -
- O que você ia me dizer, no outro Carnaval? - perguntou ela.
- Esqueci - mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil - E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...

terça-feira, 1 de março de 2011

Letras & Linhas: História da Arte

Letras & Linhas: História da Arte: " A palavra “arte” teve muitos significados durante a história. Sempre houve uma pequena discussão, pois alguns achavam que a arte era..."