sábado, 19 de março de 2011

Franz Kafka


A Metamorfose
Capítulo I
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por
si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão
duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o
arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual
a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar.
Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente
finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.
Que me aconteceu ? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar
quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as
quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado,
desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa
era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de
uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma
senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao
espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia! Gregório desviou
então a vista para a janela e deu com o céu nublado — ouviam-se os pingos de
chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não
seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? — cogitou. Mas era
impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação,
não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita,
tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes,
fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando
começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes
experimentara. Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar,
dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório
propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de andar sempre a
viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições
irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam
amigos íntimos. Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga;
arrastou-se lentamente sobre as costas, — mais para cima na cama, de modo a
conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que
estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não
compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas
imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio
gela- do. Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo,
pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros
comerciantes que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para
o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a
sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer fazer isso com o
meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era, capaz de ser bom para
mim — quem sabe? Se não tivesse de me agüentar, por causa dos meus pais, há
muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o
que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da secretária! Também é um

hábito esquisito, esse de se sentar a uma secretária em plano elevado e falar para
baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de aproximar-se bastante,
porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma esperança; depois de ter
economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem — o que deve
levar outros cinco ou seis anos —, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar
completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte
às cinco.
Olhou para o despertador, que fazia tique-taque na cômoda. Pai do Céu! —
pensou. Eram seis e meia e os ponteiros moviam-se em silêncio, até passava da
meia hora, era quase um quarto para as sete. O despertador não teria tocado? Da
cama, via-se que estava corretamente regulado para as quatro; claro que devia ter
tocado. Sim, mas seria possível dormir sossegadamente no meio daquele barulho
que trespassava os ouvidos? Bem, ele não tinha dormido sossegadamente; no
entanto, aparentemente, se assim era, ainda devia ter sentido mais o barulho. Mas
que faria agora? o próximo trem saía às sete; para o apanhar tinha de correr como
um doido, as amostras ainda não estavam embrulhadas e ele próprio não se sentia
particularmente fresco e ativo. E, mesmo que apanhasse o trem, não conseguiria
evitar uma reprimenda do chefe, visto que o porteiro da firma havia de ter esperado
o trem das cinco e há muito teria comunicado a sua ausência. O porteiro era um
instrumento do patrão, invertebrado e idiota. Bem, suponhamos que dizia que estava
doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante
cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria
lá a casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e
poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que,
evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes
perfeitamente saudáveis. E enganaria assim tanto desta vez? Efetivamente,
Gregório sentia-se bastante bem, à parte uma sonolência que era perfeitamente
supérflua depois de um tão longo sono, e sentia-se mesmo esfomeado.
À medida que tudo isto lhe passava pela mente a toda a velocidade, sem ser
capaz de resolver a deixar a cama — o despertador acabava de indicar um quarto
para as sete, ouviram-se pancadas cautelosas na porta que ficava por detrás da
cabeceira da cama.
— Gregório — disse uma voz, que era a da mãe, é um quarto para as sete.
Não tem de apanhar o trem?
Aquela voz suave! Gregório teve um choque ao ouvir a sua própria voz
responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível  e
persistente guincho chilreante como fundo sonoro, que apenas conservava a forma
distinta das palavras no primeiro momento, após o que subia de tom, ecoando em
torno delas, até destruir-lhes o sentido, de tal modo que não podia ter-se a certeza
de tê-las ouvido corretamente. Gregório queria dar uma resposta longa, explicando
tudo, mas, em tais circunstâncias, limitou-se a dizer:
— Sim, sim, obrigado, mãe, já vou levantar.
A porta de madeira que os separava devia ter evitado que a sua mudança de
voz fosse perceptível do lado de fora, pois a mãe contentou-se com esta afirmação,
afastandose rapidamente. Esta breve troca de palavras tinha feito os outros
membros da família notarem que Gregório estava ainda em casa, ao contrário do

que esperavam, e agora o pai batia a uma das portas laterais, suavemente, embora
com o punho.
— Gregório, Gregório — chamou — , o que você tem?
E, passando pouco tempo depois, tornou a chamar, com voz mais firme:
— Gregório! Gregório!
Junto da outra porta lateral, a irmã chamava, em tom baixo e quase
lamentoso:
— Gregório? Não se sente bem? Precisa de alguma coisa?
Respondeu a ambos ao mesmo tempo:
— Estou quase pronto — e esforçou-se o máximo por que a voz soasse tão
normal quanto possível, pronunciando as palavras muito claramente e deixando
grandes pausas entre elas. Assim, o pai voltou ao breve almoço, mas a irmã
segredou:
— Gregório, abre esta porta, anda.

(…)