sábado, 12 de março de 2011

Doris Lessing


Roteiro para um Passeio ao Inferno 
Sim, eu os chamarei, claro, se bem que agora um novo frio em meu coração me previna de um medo que antes não tinha. Jamais pensara, em todos aqueles ciclos, círculos e circuitos, rodando, rodando, rodando, que Eles pudessem simplesmente não me notar, como um homem poderia deixar de notar um gatinho dormindo ou um cachorrinho cego escondido sob a dobra de sua manta malcheirosa. Por que haveriam de notar uma balsa no mar imenso? Mas não há nada a fazer senão continuar, sem remo, sem leme, sem dormir, exausto. Afinal,sei que seria bondade aportar na praia de Nancy e dizer-lhe que seu Charlie afinal encontrou algo – mas o quê? Eles, suponho, embora nem mesmo possa lhe dizer como se sentiu ao ser absorvido por aquela Coisa brilhante. Ela me cantará sua canção, eu em minha balsa, passando à deriva; as mulheres se alinharão pelos muros dos jardins de verão cantando, e então cantarei que é passado o tempo do amor? E depois encontrarei o amigo de George e lhe gritarei que George – o quê? E onde? E depois e adiante, até tornar a ver minha Conchita me esperando, vestida de freira, levada a isso por todas as minhas viagens e navegações.
O homem, como uma grande árvore,
Ressente as tormentas.
Braços, joelhos, mãos,
Muito duros para o amor,
Como uma árvore resiste ao vento.
Mas, desperta de vagar,
E no bosque escuro
O vento parte as folhas
E a fera negra arremete da caverna.
Meu amor, quando dizes:
“Aqui esteve a tormenta,
Aqui esteve ela,
Aqui, a fera fabulosa”,
Dirás também
Que primeiro nos beijamos de lábios fechados, temerosos,
Como se um pássaro dormisse entre elas?
Dirás:
“Foi o passarinho branco que me prendeu?”
E assim ela canta, cada vez que passo, rodando, rodando, e continuando sempre.