sábado, 12 de fevereiro de 2011

Graça Aranha

graça
SACRIFÍCIO DO CAVALO
Ao amanhecer de um dia nevoeiro, a paisagem perdera o seu contorno exato e regular. As linhas definitivas dos objetos se confundiam, as montanhas enterravam as cabeças nas nuvens, a cabeleira das árvores fumegava, o rio sem horizonte, sem limite, como uma grande pasta cinzenta, se ligava ao céu baixo e denso. O desenho se apagara, a bruma mascarava os perfis das coisas e o colorido surgia com a sombra numa sublime desforra. Por toda a parte manchas esplêndidas se ostentavam. E sobre a campina esverdeada, vaporosa, uma dessas manchas, ligeiramente azulada, movia-se, arqueava-se, abaixava-se, erguia-se e se ia lentamente dissipando. O sol não tardou a vir, e a natureza se sacudiu, a névoa fugiu, o céu se espanou e se dilatou em maravilhosa limpidez. A mancha móvel sobre a planície se definiu no perfil de um pobre cavalo que passeava na verdura os seus olhos de velhice e fadiga, tristes e longos. De passada, com os túmidos e negros beiços, afagava a erva, triturando-a com fastio e desânimo, enquanto a sua atenção de cavalo experimentado estava voltada para a cabana, a cuja porta os seus donos, os novos colonos magiares, o miravam com interesse. A neblina leve, veloz, vinha distraí-lo daquela postura de curiosidade humilde, e acariciava num frio elétrico o seu pêlo ralo e falhado. Estremecia num gozo manso, e estendendo o focinho, arregaçando os beiços, sensual e grato, beijava o ar. Não mais encontrava a névoa, que fugira para os montes, levada pela brisa, como se fosse o imperceptível véu que envolvesse alguma deusa errante e retardada. Um rio de sol, porém, descera a brincar-lhe nos olhos e incendiava-lhe a pupila. Meiguices da natureza.
Um dos jovens magiares, levando uma corda, caminhou para o cavalo. O animal entregou-lhe a cabeça numa mistura de abandono e tédio. O rapaz passou-lhe o cabresto e o levou ao poste fronteiro à casa, onde o amarrou. Os colonos tinham resolvido principiar naquele dia a plantação do seu prazo, e o velho deu ordem de partir para a queimada. Os filhos armaram-se das ferramentas de lavoura, o cigano, saindo de sua modorra e apenas armado de um chicote, acompanhou os outros, que, desamarrando o cavalo, seguiram com ele para o roçado. As raparigas que ficavam em casa cheias de instintivo pavor, viam o grupo afastar-se vagarosamente.
Chegaram ao aceiro que, aberto como uma larga ferida sobre o dorso da terra, era um sulco de alguns metros de largura, circundando a queimada. Da mata carbonizada ainda resistiam de pé alguns troncos despojados, enegrecidos. Milkau e Lentz, passeando àquela hora, passaram perto do roçado e viram chegar aí o grupo dos vizinhos.
- Ainda bem, disse Milkau, eles vão trabalhar; fazia-me dó ver esta gente apática, irresoluta, entorpecida na preguiça.
- Mas para que trazem eles quase arrastado aquele cavalo? Perguntou Lentz.
E os dois se afastaram um pouco e ficaram a distância, acompanhando os movimentos do grupo.
O velho colono segurou o animal pelo cabresto e o colocou no meio da vala. Os filhos puseram-se de lado, num recolhimento religioso. O pai puxou o cavalo para a frente. De chicote em punho, o cigano seguia atrás, e a primeira vergastada, cortando o ar num sibilo, caiu em cheio sobre o animal. Este, como arrancando-se de si mesmo, pinoteou assustado. Novas lambadas foram arremessadas por mão vigorosa. Estirou o cavalo o pescoço para a frente, abaixou-se, alongou-se, encostando quase o ventre à terra, como para se libertar do flagelo que lhe vinha do alto. Os seus membros se estorciam, confrangidos sob a dor imensa. E desapiedadamente, puxavam-no para diante, levando-o ao furor do açoite. Naquele sacrifício cumpria-se uma missão sagrada: ligava-se à nova terra o nervo da tradição da terra antiga. Quando os antepassados tártaros desceram do planalto asiático, e no solo europeu renunciaram à vida errante dos pastores, para lavrar o campo e buscar na cultura a satisfação da vida, sacrificaram aos deuses o velho companheiro de peregrinação nos brancos estepes. E, assim, a imolação ficou sempre no espírito dos descendentes como um dever, cujas raízes se estendem até ao fundo da alma das raças.
Continuava o grupo a caminhar. O velho, como um sacerdote, conduzia a vítima, seguida do cigano, em cujo rosto se recompunha a antiga expressão infernal e terrível dos antepassados, num retrocesso harmônico e rápido, produzido pelo singular efeito da paixão sanguinária. Os outros assistiam mudos à cerimônia. O chicote vibrava incessante; as suas pontas de ferro cortavam o lombo do animal. O ar leve e frio, penetrando nos fios de carne viva, causava uma dor fina, aguda, acerba, e a vista e o cheiro do sangue excitavam ainda mais a energia do flagelador. Veio-lhe uma histérica insensibilidade, uma rudimentar anestesia, uma assassina obsessão. Estonteou-o uma vertigem, mas o açoite não parou. Os sulcos na carne se abriam mais fundos; o sangue escorria frouxo. Mofino de dor, o cavalo prosseguia arrastado, regando a terra. Gotas vermelhas respingavam sobre a descoberta cabeça do velho magiar, de uma brancura de açucena. As suas narinas se dilatavam em lânguido gozo. Cavos gemidos ressoavam no peito da besta. E no seu olhar infinito de moribundo se traduziam os humildes protestos e os tímidos apelos de misericórdia.
E o relho soava, enquanto o mártir ia lento, de pescoço estirado, pernas trôpegas, esvaindo-se pelas veias abertas, como torneiras de sangue. O cigano mais terrível, mais feroz, transfigurava-se, e da sua garganta afinada irrompeu brusco, sonoro, o canto de guerra dos velhos tártaros. O chicote cruel e rápido marcava o compasso desse ritmo estranho. O contágio do furor se apoderou dos outros, que, imobilizados, assistiam ao sacrifício. E embriagados pouco a pouco pelas frases da música, pela sugestão do rito, pelo odor de carne sangrenta, acompanhavam o canto, num coro infernal. O animal, exausto, caíra de lado, como um peso inerte. O açoite inexorável ainda o levantou uma vez, e no solo, como numa verônica, ficou estampada a imagem do seu corpo, impressa em sangue. Prosseguia sem interrupção, fogoso, lúgubre, o canto que feria asperamente o ar, e era o eco da melodia satânica da morte. O cavalo deu mais alguns passos, cambaleando como um alucinado, e afinal se prostrou sobre a terra. Arquejante resfolegando num espaçado estertor, morria vagarosamente. Nas suas pupilas de moribundo se fotografaram num derradeiro clarão as fisionomias dos algozes. E esta imagem medonha, que se lhe guardara no interior dos olhos, era a infinita tortura que o acompanharia além da própria morte, presidindo à dolorosa decomposição da sua carne de mártir.
Cessaram as vozes. Os homens se agruparam em torno do cadáver, rezando como fantasmas loucos. Poças e fios vermelhos manchavam o sulco. A camada de argila, lisa, escorregadia como uma couraça, tornava o seio da terra impenetrável ao sangue, que sorvido pelo sol se evaporava e dissolvia no ar. Era a rejeição do sacrifício, o repúdio da imolação, rompendo a cruenta tradição do passado. A nova Terra juntava a sua contribuição aos límpidos ideais dos novos homens...
(Canaã,1902)