domingo, 6 de fevereiro de 2011

Stefan Zweig


Brasil Um País do Futuro


Antigamente, antes de tornar público um livro, os escritores costumavam fazer um pequeno prólogo em que informavam por que razões, a partir de que pontos de vista e com que intuito haviam escrito o seu livro. Era um bom hábito. Por causa da franqueza e da abordagem direta, criava de antemão uma harmonia entre aquele que escreve e aquele para quem foi escrito. Sendo assim, também eu gostaria de dizer com a maior franqueza possível o que me levou a me ocupar de um tema aparentemente tão distante do meu trabalho normal.
Quando, em 1936, estava prestes a participar do congresso do Pen Club em Buenos Aires, na Argentina, recebi um convite para visitar também o Brasil. Minhas expectativas não eram muito altas. Sobre o Brasil, eu tinha a mesma imagem algo pretensiosa que tem o europeu ou o norte-americano medianos, e eu me esforço em reconstruí-la: uma daquelas república sul-americanas que não distinguimos bem umas das outras, com clima quente e insalubre, situação política instável e finanças em desordem, mal administrada e onde apenas as cidades litorâneas são relativamente civilizadas, porém geograficamente belo e com muitas possibilidades mal aproveitadas - um país, portanto, para emigrados desesperados, mas de modo algum um lugar do qual se possam esperar estímulo intelectuais. Ficar uns dez dias me parecia o suficiente para alguém que não era nem geógrafo profissional nem colecionador de borboletas, caçador desportista ou comerciante. Oito dias, dez dias, e depois voltar rapidamente, assim pensei, e não me envergonho em registrar essa minha disposição tola. Acho até importante, pois essa imagem é aproximadamente a que vigora ainda hoje em nossos círculos europeus e norte-americanos. Em termos culturais, o Brasil é, até hoje, a mesma terra incógnita que, no sentido geográfico, foi para os primeiros navegantes. Volta e meia me surpreendo com os conceitos confusos e insuficientes que mesmo pessoas eruditas e politicamente interessadas têm acerca desse país o qual, no entanto, indubitavelmente está fadado a ser um dos fatores mais importantes do desenvolvimento futuro do nosso mundo. Quando a bordo, por exemplo, um comerciante de Boston se referiu de forma bastante depreciativa aos pequenos países sul-americanos e eu tentei lembrá-lo que o território do Brasil é maior do que o dos Estados Unidos, ele achou que eu estava brincando e somente se convenceu depois de dar uma olhada no mapa. Noutra ocasião, eu descobri no romance de um conhecido autor inglês um detalhe curioso: o fato de o personagem principal viajar para o Rio de Janeiro a fim de aprender o espanhol. Mas esse autor é apenas uma das incontáveis pessoas ignorantes do fato de que a língua falada no Brasil é o português. Mas, como já disse, não me compete criticar outros pelos seus parcos conhecimentos, pois eu próprio, quando deixei a Europa pela primeira vez, nada ou quase nada de confiável sabia sobre o Brasil. 
Chegamos ao Rio: foi uma das impressões mais poderosas que eu experimentei em toda a minha vida. Fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, estremeci. Pois não apenas me defrontei com uma das paisagens mais belas do mundo, esta combinação ímpar de mar e montanha, cidade e natureza tropical, mas ainda com um tipo completamente diferente de civilização. Contrariando todas as minhas expectativas, o quadro era de ordem e limpeza na arquitetura e na paisagem urbanas, com ousadia e grandiosidade em todas as coisas novas e, ao mesmo tempo, uma cultura espiritual antiga, conservada de forma especialmente feliz por causa da distância. Havia cor e movimento. O olhar excitado não se cansava de ver e, para onde olhasse, era recompensado. Fiquei possuído por um torpor de beleza e de felicidade que excitava os sentidos, crispava os nervos, dilatava o coração, ocupava o espírito, e quanto mais eu via, nunca era o bastante. Nos últimos dias, viajei para o interior – quer dizer, imaginei estar viajando para o interior. Viajei doze, quatorze horas até São Paulo, até Campinas, acreditando estar me aproximando do coração do país.
Mas quando, ao voltar, olhei para o mapa, descobri que mesmo depois dessas doze ou quatorze horas de trem mal havia passado da epiderme do país. Pela primeira vez, comecei a perceber a grandeza inconcebível daquele país que não deveria ser chamado de país e sim de continente, um mundo com espaço para trezentos, quatrocentos, quinhentos milhões de habitantes e uma riqueza incomensurável, da qual nem a milésima parte foi explorada ainda sob o solo farto e intacto. Um país em rápido desenvolvimento e que apenas começa a se desenvolver, apesar de todas as atividades de trabalho, construção, criação e organização. Um país cuja importância para as próximas gerações é inimaginável até fazendo as combinações mais ousadas. E, com uma rapidez surpreendente, derreteu-se a arrogância européia que eu levara como bagagem inútil nessa viagem. Percebi que tinha lançado um olhar para o futuro do nosso mundo. 
Quando o navio zarpou – era uma noite estrelada, e, apesar disso, aquela cidade única brilhava com seus colares de pérolas de luz elétrica mais bela e mais misteriosa do que as faíscas no firmamento – tive a certeza de que não estava vendo aquela cidade e aquele país pela última vez. Tive a clareza de que, na verdade, não havia visto nada, ou pelo menos não o suficiente. Planejei voltar logo no ano seguinte, mais bem preparado, para ficar mais tempo e para experimentar outra vez e mais intensamente aquela sensação de viver dentro do porvir, do futuro, desfrutando mais conscientemente da segurança da paz e do bom ambiente acolhedor. Mas não pude cumprir a minha promessa. No ano seguinte eclodiu a guerra na Espanha, e todos se diziam: esperemos por tempos mais calmos. Em 1938 caiu a Áustria, e novamente foi o caso de esperar por um momento mais tranqüilo. Depois, em 1939, veio a Tchecoslováquia, e depois a guerra na Polônia, e depois a guerra de todos contra todos na nossa Europa suicida. Cada vez mais ardente se tornou o meu desejo de me afastar por algum tempo de um mundo que se destrói para um mundo que se constrói pacífica e criativamente. Afinal, voltei para aquele país, mais bem preparado do que antes, para tentar fazer dele uma pequena descrição. 


Sei que esta descrição não é e nem poderia ser completa. É impossível conhecer inteiramente o Brasil, esse mundo tão vasto. Passei cerca de meio ano nesse país, mas só agora, apesar de toda a vontade de aprender e de todas as viagens, sei o quanto falta para ter uma visão realmente completa desse gigantesco reino e que uma vida inteira não bastaria para poder afirmar: conheço o Brasil. Não pude conhecer vários estados, dentre os quais alguns que são tão grandes ou maiores do que a França ou a Alemanha. Não atravessei as regiões de Mato Grosso, Goiás ou as selvas do rio Amazonas, que nem foram ainda inteiramente penetradas por expedições científicas. Portanto, não travei conhecimento com a vida primitiva desses povoados espalhados por vastas áreas e não posso descrever a vida de todas as categorias profissionais que mal têm contato com a civilização: a dos barqueiros que navegam nos grandes rios, a dos caboclos da região amazônica, a dos garimpeiros, a dos vaqueiros e gaúchos, a dos seringueiros na mata virgem ou a dos sertanejos de Minais Gerais. Não visitei as colônias alemãs de Santa Catarina em cujas velhas casas ainda está pendurado o retrato do imperador Guilherme e, nas novas, o de Adolf Hitler, nem as colônias japonesas do interior de São Paulo, e não posso dizer a ninguém com certeza se realmente algumas das tribos indígenas naquelas matas impenetráveis ainda são canibais.
Das atrações paisagísticas, também só conheço algumas por meio de fotografias, quadros e livros. Não percorri durante vinte dias a selva amazônica verde, grandiosa em sua monotonia, chegando às fronteiras do Peru e da Bolívia. Devido às dificuldades de navegabilidade naquela época do ano, perdi a chance de empreender a viagem de doze dias no São Francisco, o poderoso rio do interior brasileiro, tão importante para a história do país. Não escalei o Itatiaia, o pico de três mil metros de altura, de onde se divisa o planalto brasileiro com suas montanhas até Minas Gerais e o Rio de Janeiro. Não vi o Iguaçu, aquela maravilha do mundo, que precipita poderosas massas de água em uma catarata espumante, e cuja grandiosidade, segundo depoimentos de visitantes, supera em muito a do Niágara. Não penetrei com machadinha e facão na densidade opaca e brilhante da mata virgem. Apesar de todas as viagens, observações, leituras e buscas, não passei muito da borda da civilização no Brasil, e devo me consolar com a idéia de ter encontrado no máximo dois ou três brasileiros que afirmaram conhecer as profundezas internas e quase impenetráveis de seu próprio país, que me confirmaram que nem trem, barco a vapor ou carro, também impotentes contra a extensão fantástica desse reino, teriam me levado mais longe. Por honradez, tampouco posso fornecer conclusões definitivas, previsões e profecias sobre o futuro econômico, financeiro e político do Brasil. Em termos econômicos, sociológicos e culturais, os problemas do Brasil são tão novos, tão insólitos e, principalmente por causa da sua extensão, estratificados de forma tão desordenada, que cada um deles exigiria uma equipe completa de especialistas para fornecer uma explicação consistente. Impossível ter uma visão completa de um país que ainda nem consegue se perceber como conjunto, além de se estar em meio a um processo tão intempestivo de crescimento que qualquer relatório e qualquer estatística já estarão ultrapassados antes que a informação se torne escrita e que esta escrita, por sua vez, vire palavra impressa. Por isso, de toda a plêiade de aspectos destacarei principalmente um problema que me parece o mais atual e que confere ao Brasil um lugar especial entre todas as nações do mundo no que se refere ao espírito e à moral.


Este problema central, que se impõe a toda geração, portanto também à nossa, é a necessidade de responder à pergunta tão simples e, ao mesmo tempo, tão imperiosa: como conseguir em nosso mundo uma convivência pacífica entre as pessoas apesar da diversidade de raças, classes, cores, religiões e convicções? Esse é o problema com que toda comunidade, todo país sempre volta a se defrontar. A nenhum outro país senão no Brasil ele se impôs em uma constelação tão complicada, e nenhum outro país – e é como grato testemunho disso que escrevo este livro – conseguiu resolvê-lo de maneira tão feliz e exemplar como o Brasil. Uma maneira que, na minha opinião, não requer apenas a atenção, mas também a admiração do mundo. 
Pela sua estrutura etnológica, caso tivesse acompanhado a loucura nacionalista e racista da Europa, o Brasil deveria ser o país mais dividido, menos pacífico e mais conturbado do mundo. Nas ruas e nos mercados, é possível distinguir claramente as diferentes raças de que a população é composta. Há os descendentes dos portugueses, que conquistaram e colonizaram o país, a população indígena originária que habita o interior desde tempos imemoriais, os milhões de negros trazidos da África nos tempos da escravidão, e, depois, os milhões de italianos, alemães e japoneses que vieram como colonos. Do ponto de vista europeu, seria de se esperar que cada um desses grupos fosse hostil com os outros – os que chegaram primeiro com os que vieram depois, brancos contra negros, americanos contra europeus, morenos contra amarelos; que as maiorias e as minorias se hostilizassem em uma disputa incessante pelos seus direitos e privilégios. Para surpresa, descobre-se que todas essas raças, que já pela cor evidentemente se distinguem umas das outras, convivem em plena harmonia e, apesar das diferentes origens, apenas competem no empenho de acabar com suas diversidades a fim de se tornarem rapidamente brasileiros, de constituir uma nação nova e homogênea. Da maneira mais simples, o Brasil – e a significação deste grandioso experimento me parece exemplar – tornou absurdo o problema racial que complica o nosso mundo europeu: simplesmente ignorando seu suposto valor. Enquanto, no nosso velho mundo, prevalece a loucura de se querer criar pessoas de "raça pura", como se fossem cavalos de corrida ou cães , a nação brasileira se baseia há séculos unicamente no princípio da mistura livre e sem entraves, a total equiparação entre negros e brancos, morenos e amarelos. Aquilo que, em outros países, apenas ficou estabelecido na teoria em papel e pergaminho – a igualdade civil absoluta na vida pública e na vida privada – , aqui existe visivelmente no espaço real: na escola, nas repartições, nas igrejas, nas profissões e no exército, nas universidades e nas cátedras. É comovente ver as crianças de todos os matizes da epiderme humana - chocolate, leite e café - voltando da escola abraçadas, e tal união física e espiritual atinge os níveis mais elevados, as academias e os cargos estatais. Não há fronteiras entre cores, nem exclusões, divisões arrogantes, e nada é mais característico para a naturalidade dessa convivência do que a falta de palavras pejorativas na língua. Enquanto, entre nós, cada nação inventa uma palavra odiosa ou de desprezo para a outra, como Katzelmacher ou boche, falta totalmente no vocabulário brasileiro a palavra correspondente depreciativa para o negro ou o crioulo, pois quem poderia, quem quereria se gabar aqui de ser de raça pura? Se foi exagerada a afirmação irritada de Gobineau de que a única pessoa de raça pura que ele encontrou foi o imperador Dom Pedro II, é exatamente o brasileiro genuíno – excetuando-se os últimos emigrados – quem pode ter certeza de ter algumas gotas de sangue nativo. Mas – surpresa – ele não se envergonha disso. O suposto princípio destrutivo da mistura, esse horror, esse "pecado contra o sangue" dos nossos fanáticos teóricos racistas, é, aqui, o cimento de uma civilização nacional, conscientemente utilizado. Sobre esse fundamento ergueu-se, há quatrocentos anos, uma nação e – milagre! – a constante miscigenação e a mútua adaptação no mesmo clima e nas mesmas condições de vida forjaram um tipo humano próprio, que carece de todas aquelas qualidades "desagregadoras" tão pomposamente proclamadas pelos fanáticos da raça pura. Raramente se vêem em qualquer outra parte do mundo mulheres mais belas e crianças mais bonitas do que entre os mestiços, de estatura delicada, postura meiga; é com alegria que se observa nos rostos morenos dos estudantes a inteligência associada à modéstia tranqüila e à polidez. Uma certa ternura, uma suave melancolia forjou aqui um contraste novo em oposição ao tipo mais rigoroso e ativo do norteamericano. O que se "desagrega" nessa mistura são apenas os contrastes veementes e, por isso, perigosos. Essa desagregação sistemática dos grupos nacionais ou raciais, principalmente unidos para a luta, facilitou infinitamente a criação de uma consciência nacional, e é impressionante como a segunda geração já se sente apenas brasileira. São sempre os fatos, com sua força avassaladora, que refutam as teorias de papel dos dogmáticos. Por isso, o experimento "Brasil", com sua negação completa e consciente de qualquer diferença de cor e de raça, em seu êxito visível trouxe uma importante contribuição no sentido de eliminar um desvario que gerou mais discórdia e desgraça para o nosso mundo do que qualquer outro. 
Agora se sabe por que a alma fica tão aliviada logo que pisamos nesta terra. No primeiro momento tem-se a impressão de que esse efeito libertador e calmante é apenas uma alegria para os olhos, uma absorção feliz daquela beleza única que acolhe o recém-chegado com os braços bem abertos. Logo, no entanto, reconhecemos que essa disposição harmônica da natureza aqui passou a ser o modo de vida de uma nação inteira. Algo de inverossímil e de benfazejo envolve aquele que acabou de fugir da absurda loucura da Europa: a total ausência de qualquer hostilidade na vida pública e na privada. Aquela terrível tensão que há quase um século estira nossos nervos aqui praticamente inexiste. Todas as contradições, mesmo no campo social, são significativamente menos acentuadas e, sobretudo, menos envenenadas. A política, com todas as suas perfídias, ainda não é o eixo da vida privada nem o centro de todo o pensar e sentir. Logo que se chega ao país, a primeira surpresa, que se renova diariamente de maneira feliz, é descobrir a maneira gentil e pouco fanática com que as pessoas convivem naquele espaço imenso. Involuntariamente, respiramos aliviados por termos escapado ao ambiente sufocado do ódio de classe e racial para esta atmosfera mais quieta e humana. Não resta dúvida de que o estilo de vida é mais desleixado. Sob a influência imperceptivelmente relaxante do clima, as pessoas afrouxam, desenvolvem menos força impulsionadora, menos veemência, menos dinamismo – portanto, precisamente as qualidades que, hoje em dia, supervalorizamos tragicamente como sendo os valores morais de um povo. Mas para nós, que experimentamos em nossas próprias vidas as conseqüências terríveis dessas exaltações psíquicas, da avidez e da sede de poder, essa forma mais mansa e suave da vida é um benefício e uma felicidade. Longe de mim pretender passar a ilusão de que, no Brasil, tudo já esteja no estágio ideal. Muita coisa está apenas no começo ou em transição. O nível de vida de uma grande parte da população ainda está muito abaixo da nossa. As atividades tecnológicas e industriais desta nação de cinqüenta milhões de habitantes só são comparáveis ainda às de pequenos países europeus. A máquina administrativa ainda não está azeitada e às vezes produz paradas incômodas. Quem viaja algumas centenas de milhas para o interior ainda retrocede um século para a era primitiva. O recém-chegado terá que se adaptar a pequenas impontualidades e inexatidões na vida cotidiana, a um certo desleixo, e certos viajantes que costumam ver o mundo apenas a partir do hotel e do carro ainda podem se dar ao luxo de voltar com a sensação arrogante de pertencer a uma civilização superior, achando muita coisa no Brasil atrasada ou pouco confiável. Mas os acontecimentos dos últimos anos mudaram essencialmente nossa opinião sobre o valor das palavras "civilização" e "cultura". Não estamos mais dispostos a equipará-las aos conceitos de "organização" e "conforto". Nada promoveu mais esse fatídico engano do que a estatística que, enquanto ciência mecânica, calcula o produto interno bruto e a renda per capita de um país – quantos carros, banheiros, aparelhos de rádio e taxas de seguro existem por cabeça. De acordo com essas tabelas, os povos mais cultos e civilizados seriam aqueles que têm a maior produção, o máximo em consumo e a maior soma de rendas individuais. Vimos que um grau mais elevado de organização não impediu os povos de usar essa organização apenas em nome da bestialidade no lugar da humanidade, e que a nossa civilização européia está em perigo pela segunda vez no período de apenas um quarto de século. Assim, não estamos mais dispostos a reconhecer um ranking de acordo com o poder industrial, financeiro ou militar de um povo, e sim usar como medida da superioridade de um povo o espírito pacifista e humanitário.
Nesse sentido – a meu ver, o mais importante – o Brasil parece-me ser um dos países mais exemplares e amáveis do mundo. É um país que odeia a guerra, e mais: que praticamente a desconhece. Com exceção do episódio do Paraguai, insensatamente provocado por um ditador enlouquecido, há mais de um século o Brasil tem resolvido todos os seus conflitos limítrofes com seus vizinhos por meio de acordos amigáveis e apelos a cortes internacionais. Seu orgulho e seus heróis não são os generais, e sim estadistas como o visconde do Rio Branco, que soube evitar guerras por meio da razão e da conciliação. Fechado em si, as fronteiras lingüísticas equiparadas às fronteiras geográficas, o Brasil não tem ambições de conquistas territoriais ou tendências imperialistas. Nenhum vizinho exige nada dele, nem o país exige nada de seus vizinhos. Nunca a paz no mundo se viu ameaçada por sua política, e mesmo em tempos de incerteza como os nossos não se pode imaginar que esse princípio básico de seu pensamento nacional, esse desejo de entendimento e conciliação alguma vez pudesse mudar. Pois esse desejo de conciliação, essa postura humanitária não tem sido a mentalidade casual dos diferentes governantes. É o produto natural de um caráter popular, da tolerância inata do brasileiro, comprovada ao longo de sua história. O Brasil foi a única entre as nações ibéricas que jamais conheceu perseguições religiosas sangrentas, nunca viu arder as fogueiras da Inquisição, em nenhum outro país os escravos foram tratados de forma relativamente mais humanitária. Mesmo suas revoltas internas e mudanças de governo se efetuaram praticamente sem derramamento de sangue. O rei e os dois imperadores que a vontade do Brasil de se tornar independente fez deixar o país retiraram-se sem serem importunados, sem ódio. Desde a independência, mesmo os líderes de revoltas e levantes fracassados não tiveram de pagar o preço com a vida. Os governantes deste povo sempre se viram inconscientemente forçados a se adaptar a esse espírito de conciliação. Não foi acaso o fato de que durante décadas, a única monarquia entre todos os países da América – o Brasil teve como seu imperador o regente mais democrático e mais liberal de todas as cabeças coroadas. E hoje, enquanto ditadura, conhece mais liberdades individuais e contentamento do que a maioria dos nossos países europeus. Por isso, é sobre a existência do Brasil, cujo único desejo é a construção pacífica, que repousam nossas maiores esperanças de uma civilização futura e de pacificação do nosso mundo devastado pelo ódio e pela loucura. Onde quer que forças éticas estejam trabalhando, é nosso dever fortalecer essa vontade. Ao vislumbrar esperanças de um novo futuro em novas regiões em um mundo transtornado, é nosso dever apontar para este país e para tais possibilidades. 
E por isso escrevi este livro.